A de Antonia, D de dodó, T de tigre-da-tasmânia, U de urso...

Coreógrafa alemã regressa a Portugal para mostrar o seu Abecedarium Bestiarium no Auditório de Serralves.

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Um dos animais extintos de Abecedarium Bestiarium: o tigre da Tasmânia ANJA WEBER

Não necessariamente por causa de todas essas coincidências, em 2012 criou uma peça, My Dog Is My Piano, em que analisava a longa coabitação (e a longa contaminação) entre a sua mãe e o cão dela, Tocki; a peça com que hoje regressa a Portugal (passou pelo Festival Materiais Diversos em 2010 com um espectáculo, Rir, em que passava 50 minutos a rir-se) é uma reflexão paralela sobre a forma como o ser humano se relaciona com os animais, e em particular com os animais que têm uma história de extinção para contar. “My Dog Is My Piano era sobre as afinidades entre dois seres vivos; um dueto que tem lugar 24 horas sobre 24 horas há mais de 14 anos. Abecedarium Bestiarium é sobre as afinidades intemporais entre nós e um conjunto de animais desaparecidos que funcionam sobretudo como metáforas, superfícies de projecção do nosso imaginário individual e colectivo, até porque pouco sabemos sobre eles. Nalguns dos casos não há sequer fotografias; as únicas representações que existem são desenhos”, explica. Nisso, a origem desta peça mistura-se de facto com a infância de Antonia Baehr – uma infância muito particular, passada no campo, em França, rodeada de animais por todos os lados e a curta distância de algumas das mais extraordinárias grutas rupestres da Europa, onde pelo menos uma das histórias de extinção que aqui se contam, a do cavalo selvagem (Equus sylvestris) foi resgatada. “Parte tudo daquele jogo muito comum que fazemos quando somos crianças: ‘Se fosses um animal, que animal serias?’”, continua.

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Não necessariamente por causa de todas essas coincidências, em 2012 criou uma peça, My Dog Is My Piano, em que analisava a longa coabitação (e a longa contaminação) entre a sua mãe e o cão dela, Tocki; a peça com que hoje regressa a Portugal (passou pelo Festival Materiais Diversos em 2010 com um espectáculo, Rir, em que passava 50 minutos a rir-se) é uma reflexão paralela sobre a forma como o ser humano se relaciona com os animais, e em particular com os animais que têm uma história de extinção para contar. “My Dog Is My Piano era sobre as afinidades entre dois seres vivos; um dueto que tem lugar 24 horas sobre 24 horas há mais de 14 anos. Abecedarium Bestiarium é sobre as afinidades intemporais entre nós e um conjunto de animais desaparecidos que funcionam sobretudo como metáforas, superfícies de projecção do nosso imaginário individual e colectivo, até porque pouco sabemos sobre eles. Nalguns dos casos não há sequer fotografias; as únicas representações que existem são desenhos”, explica. Nisso, a origem desta peça mistura-se de facto com a infância de Antonia Baehr – uma infância muito particular, passada no campo, em França, rodeada de animais por todos os lados e a curta distância de algumas das mais extraordinárias grutas rupestres da Europa, onde pelo menos uma das histórias de extinção que aqui se contam, a do cavalo selvagem (Equus sylvestris) foi resgatada. “Parte tudo daquele jogo muito comum que fazemos quando somos crianças: ‘Se fosses um animal, que animal serias?’”, continua.

Para uma das amigas que convidou a co-criar este álbum colectivo que é Abecedarium Bestiarium, a resposta foi óbvia: Dodo escolheu o dodó (Raphus cucullatus) porque Antonia queria saber como é viver debaixo do nome (e da asa) do animal extinto mais famoso do mundo. Ao contrário do nome da coreógrafa, e do rato que também é um nome de família comum, o nome de Dodo conta uma história de inadaptação: “O rato adapta-se a tudo, funciona sempre; a sua adaptabilidade está até relacionada com o desaparecimento de alguns animais, que os ratos transportados nos barcos dos colonizadores contaminaram com as doenças europeias. Há uma eficácia na sobrevivência do rato que os animais extintos não têm – a marginalidade matou-os, sobrevivem apenas enquanto fantasmas.”

Exaustivo, o abecedário que a coreógrafa construiu a partir das partituras curtas encomendadas aos amigos de acordo com uma instrução simples – deviam inspirar-se no animal extinto que melhor representasse a sua ligação pessoal com Antonia – documenta, usando meios muito diversos, o desaparecimento do golfinho-chinês do rio Yang-Tsé (Lipotes vexilifer), do tigre-da-tasmânia (Thylacinus cynocephalus), da pomba-fruta de bigode vermelho da ilha de Hivaoa, da vaca-marinha de Steller (Hydromalis gigas) descoberta em 1741 no Estreito de Bering… Em Serralves, apresenta-se na sua versão incompleta de recital – oito letras para outros tantos animais que são outras tantas metáforas das amizades que a coreógrafa alemã construiu na vida e no trabalho, algumas remontando à infância no Sul de França, outros aos seus tempos de squatter em Berlim – e na sua versão completa de livro paralelo. Quis rodear-se destas pessoas porque não lhe apetecia estar sozinha neste solo: “Ainda assim, há sempre uma sensação de vazio… Os amigos não estão, os animais também não. Mas o teatro é talvez o melhor lugar para fazermos aparecer os ausentes, os invisíveis.”

Entretanto, Antonia não teve de descobrir que animal seria se fosse um animal. O urso está lá desde sempre: não o urso verdadeiro, directo e perigoso, mas o urso do imaginário colectivo, lento e caloroso. Depois de Abecedarium Bestiarium, ela já só tem uma dúvida: “Será que te transformas em urso porque te chamas urso ou chamas-te urso porque o teu antepassado se parecia com um urso?”.