Contemplar por aí

Há uns anos, Benjamin Verdonck teve uma conversa com um amigo num bar em Berlim que terminou com a seguinte conclusão: o melhor que um artista pode fazer é retirar-se graciosamente. Precisamente o que experimenta em notallwhowanderarelost, que agora chega ao Porto e a Lisboa.

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Kurt Van Der Elst

Sim, há triângulos amarelos e vermelhos, e belas frases do argentino Jorge Luis Borges (“O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”, reza o parágrafo retirado de Nova Refutação do Tempo), latas de Coca-Cola e mais umas coisas que ele viu escritas na porta da casa-de-banho de um bar em Berlim onde teve uma conversa que, para efeitos do que se passa em notallwhowanderarelost, foi uma epifania. “Wahrheit = Konkret was written on the toilet door. Real men don’t eat honey, they chew on bees”, que traduzido poderá querer dizer algo como: “Verdade = Betão estava escrito na parede da casa-de-banho. Os homens a sério não comem mel, mastigam abelhas.” Ou então puxam uns cordelinhos e fazem deslizar formas geométricas, como Benjamin Verdonck neste notallwhowanderarelost com que o Teatro Municipal do Porto – Rivoli celebra hoje e amanhã o Dia Mundial das Marionetas, às 21h30, e que de 24 a 27 aterra no Teatro Maria Matos, em Lisboa, para festejar, com entrada gratuita, os Dias do Teatro.

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Sim, há triângulos amarelos e vermelhos, e belas frases do argentino Jorge Luis Borges (“O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”, reza o parágrafo retirado de Nova Refutação do Tempo), latas de Coca-Cola e mais umas coisas que ele viu escritas na porta da casa-de-banho de um bar em Berlim onde teve uma conversa que, para efeitos do que se passa em notallwhowanderarelost, foi uma epifania. “Wahrheit = Konkret was written on the toilet door. Real men don’t eat honey, they chew on bees”, que traduzido poderá querer dizer algo como: “Verdade = Betão estava escrito na parede da casa-de-banho. Os homens a sério não comem mel, mastigam abelhas.” Ou então puxam uns cordelinhos e fazem deslizar formas geométricas, como Benjamin Verdonck neste notallwhowanderarelost com que o Teatro Municipal do Porto – Rivoli celebra hoje e amanhã o Dia Mundial das Marionetas, às 21h30, e que de 24 a 27 aterra no Teatro Maria Matos, em Lisboa, para festejar, com entrada gratuita, os Dias do Teatro.

Pois. Talvez estejamos um pouco perdidos, como alguns daqueles que vagueiam – e perdidos também porque Benjamin Verdonck, enquanto puxa um fio e solta outro, está entretido a “desaparecer graciosamente”, por respeito à conclusão dessa conversa num bar de Berlim em que K. lhe respondeu que, aqui chegados, isso é o melhor que um artista pode fazer. Senhoras e senhores, estamos mesmo condenados a flutuar no espaço (e já agora no tempo), como naquele disco dos Spiritualized que o nosso amigo dos triângulos também tem idade para ter ouvido. O Muro de Berlim já tinha então ido abaixo, e pudemos descansar em paz: “O Muro de Berlim era demasiado pequeno. Só nos serviam mini-latas de cerveja e metade de uma Bratwurst. Aí conheci o K.”E K., bem, K. tornou-se tão importante para esta performance como o anúncio daquele perfume cuja marca Benjamin Verdonck já nem sequer consegue reproduzir (talvez por tanto ter querido esquecer). Quando as portas se abrem, quando as cortinas sobem, o artista belga está sozinho com esses “vestígios de histórias” que nos cabe a nós, espectadores um pouco perdidos, completar. Se estivermos para isso, porque ele, Benjamin Verdonck, também acha bem se escolhermos antes sentar-nos a ver o tempo passar.

Caixa mágica
De volta a este planeta dos triângulos e das frases que felizmente não compreendemos muito bem. “Tinha vontade, urgência até, de fazer uma peça contemplativa, um gesto contemplativo, e a razão foi ter ficado muito impressionado com um encontro que tive em Berlim, uma conversa com um amigo em que discutimos o que fazer com o mundo, com as pessoas. A conclusão a que chegámos, ‘to whithdraw gracefully’, pareceu-me uma bela metáfora do que a arte é para mim. E então decidi trabalhar em direcção a essa contemplação”, explica ao Ípsilon Benjamin Verdonck, ao telefone noite dentro desde Antuérpia.

Como a partir daí chegou à maquete de um teatro de mesa móvel e modular que tanto pode aparecer como desaparecer em qualquer lugar é da ordem do mistério, como muito do que se passa em notallwhowanderarelost. “Estipulei que lá dentro não podia haver se não movimentos muito básicos – podes vir de frente ou de trás, da esquerda ou da direita, pouco mais – e construí com eles uma coreografia primitiva com a forma geométrica mais simples, o triângulo (um triângulo é fácil de movimentar: pode cair, pode equilibrar-se numa ponta), que em certo sentido ilustra a frase do anúncio do perfume. É incrível como essa frase, que por um lado achei nojenta por estar a vender uma inutilidade e por outro achei linda, ficou comigo tanto tempo. Gosto dessa tensão. Tem a ver com a fraqueza que é indissociável da Humanidade: assim que atinges a sabedoria tentas vendê-la de forma estúpida… Mas acho mesmo que não é por estares à procura de alguma coisa que é incerta e pouco clara que estás necessariamente perdido”, continua.

Era uma ambição antiga, a caixa mágica que agora experimenta em notallwhowanderarelost. “Uma vez vi uma peça em Paris, Le Cirque de Calder, que me inspirou imenso: puxas um cordelinho e aparece um leão ou um elefante de arame que provoca um sorriso enorme na cara de um velho que bebeu de mais. Desde então quero fazer algo assim; tentei várias vezes e nunca consegui. O meu trabalho sempre esteve próximo das artes visuais e houve outras alturas em que puxei fios para fazer acontecer coisas. Gosto dessa ligação entre a técnica e o palco e apaixona-me o tempo em que ainda era visível a ligação entre as duas coisas, embora saiba que é romântica, essa nostalgia por algo que já passou”, diz.

Foi essa simplicidade que procurou – e que encontrou. “É bom quando as pessoas percebem o truque, e aqui faço tudo às claras. As pessoas sentem-se ligadas, sentem-se comovidas, ainda que aquilo que eu lhes dê sejam apenas os restos de uma história. A minha ‘retirada’ tem a ver com isso. No fim acabas a escrever um poema com vestígios de frases, vestígios de cores, vestígios de formas – um poema que é um grande segredo que eu partilho com aquelas 70 pessoas.”

Grande segredo: bem vistas as coisas, notallwhowanderarelost não é “uma peça que tenta chocar o público ou a burguesia”, mas bem lá no fundo funciona como “contraponto a este mundo capitalista e frenético em que tudo tem um preço”. “O melhor para mim é quando as pessoas me dizem que enquanto assistiram à peça se reapropriaram do tempo. Percebes ou não percebes, gostas ou não gostas, mas passas uma bela hora – quase como numa sessão de ioga.” Já podemos respirar fundo.