O suicídio como meio de sobrevivência

Um texto de Jean-Pierre Sarrazac em estreia mundial no Porto que o confirma como importante destino teatral europeu.

Foto
TUNA/TNSJ

Enquanto uma parte da população se afunda, devagar, abaixo do nível de pobreza, outra parte desce para o baile, e pede só mais uma música à orquestra. De um lado a fome, do outro a festa. O país está exposto à dívida, à austeridade, ao desemprego. O retrato do país, esse, está sobre-exposto: à propaganda, às relações públicas, ao entusiasmo do marketing político.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Enquanto uma parte da população se afunda, devagar, abaixo do nível de pobreza, outra parte desce para o baile, e pede só mais uma música à orquestra. De um lado a fome, do outro a festa. O país está exposto à dívida, à austeridade, ao desemprego. O retrato do país, esse, está sobre-exposto: à propaganda, às relações públicas, ao entusiasmo do marketing político.

O Fim das Possibilidades retrata como essa separação é possível ou, aliás, indispensável. A maior parte das personagens desta peça faz fé nas promessas alheias. Não há outra possibilidade. São poucos os que se juntam para contrariar o rumo dos acontecimentos. A maior parte confia que as coisas já estão a melhorar. Deus permite a Satanás que concentre os incapazes noutro lugar, desde que não os extermine à vista de todos, com falsas promessas. Job, ou JB, que antecipa a jogada, opta por se suicidar como último acto de resistência, preferindo manter a dignidade a deixar-se degradar aos poucos até cair na escravidão, mesmo que voluntária.

Sarrazac põe o dedo na ferida quando retrata o desempregado como um morto-vivo, e a maior parte das pessoas, palpito eu, não poderá deixar de se identificar com a estratégia de resistência, agressivo-passiva, que JB adota, entre uma e outra golada de whisky, e mais um copinho de vinho, para passar a perna ao destino.

A urgência artística, cultural e política deste espectáculo torna-o um destino obrigatório, este sim, para os espectadores de teatro. Não é que esses aspectos caucionem a criação teatral. É que o espectáculo — além de excelente nas suas diversas componentes, da luz ao som, passando pela cenografia e pelos figurinos, sem esquecer as actuações individuais e em conjunto — tem esse alcance. A peça é riquíssima e a encenação não lhe fica atrás, ambas revelando domínio da tradição, por um lado, e exploração do que há-de ser, por outro. A familiaridade súbita com as figuras, a acção, as metáforas e a estrutura da peça fazem com que Jean-Pierre Sarrazac se revele, passe o exagero, um verdadeiro autor português de expressão francesa.

Levar à cena esta peça é falar de corda em casa de enforcado. Os artistas têm sido uma das classes mais castigadas pela doutrina do capitalismo dos últimos dias, por um lado, e têm servido inúmeras vezes de flor na lapela dos oficiantes desse culto.

O Fim das Possibilidades apresenta-se em estreia mundial, no Teatro Nacional de São João, membro da União dos Teatros da Europa, fazendo prova do seu lugar no conjunto dos teatros europeus. O lugar na lista dos melhores destinos é mais do que merecido.