Rússia, uma longa história de autoritarismo

Os russos sempre aceitaram bem líderes autoritários, mas nunca foram particularmente entusiastas com governantes mais ocidentalizados.

É uma evidência histórica contra a qual nada há a fazer, apesar das ilusões que muitos ainda alimentam de que a democracia ocidental prevalecerá sobre todos os outros modelos de governação. Para já, pelo menos, isso não vai acontecer e o que se está a passar nalguns países assolados pela "Primavera Árabe" é um exemplo de que o anúncio da vitória da democracia liberal sobre todas as demais formas de Governo foi manifestamente exagerado. Ou seja, perante a oportunidade de opção, a democracia não tem sido suficientemente cativante para parte substancial dessas sociedades.

Noutros países, é mesmo a maioria dos cidadãos que nem sequer considera os valores e princípios democráticos como algo essencial nas suas vidas. É como se fosse algo genético, a aceitação pelo povo de estilos mais autoritários dos seus governantes. A Rússia é, hoje, talvez o melhor exemplo dessa forma de estar. E ao contrário de países como a Coreia do Norte — ou até mesmo a Bielorrússia e a China , no caso da Rússia já não se pode utilizar o argumento de que a população não tem acesso à informação independente ou que a liberdade de opinião está totalmente estrangulada embora ao nível da crítica política esteja muito restrita, como têm sido exemplares nos últimos anos, alguns casos de pressão ou de perseguição política, sendo o assassinato de Boris Nemtsov, o mais recente. 

Na Rússia, há claramente uma opção consciente por um estilo de governação e de liderança mais musculada. Os russos sempre aceitaram bem líderes autoritários, mas nunca foram particularmente entusiastas com governantes mais ocidentalizados, tais como Mikhail Gorbachev por muitos russos, considerado um traidor  ou Boris Yeltsin que por outros nunca foi levado muito a sério. A chegada de um homem como Vladimir Putin ao Kremlin foi vista pelos russos como o regresso dos gloriosos líderes dos tempos do império soviético.

Hoje, quando a Rússia está diplomaticamente mais isolada, quando atravessa economicamente momentos muito complicados, quando tem milhares de soldados “plantados” nalguns conflitos fronteiriços (alguns "congelados" outros mais "quentes"), Vladimir Putin consegue ter um nível de popularidade na ordem dos 85 por cento. São números divulgados recentemente, ainda antes do assassinato de Boris Nemtsov, por uma sondagem feita pelo Levada Center, uma entidade não governamental e que se diz independente, embora alguns críticos digam que estes valores não são reais. Por outro lado, há analistas que dizem que estes números correspondem, precisamente, ao apoio que Putin tem do povo, com a ressalva de que, nos últimos dias, a popularidade do Presidente russo possa ter descido um pouco.

Uma coisa é certa, mesmo admitindo que os números desta sondagem possam estar inflacionados, Putin goza de um enorme apoio popular, como, aliás, sempre gozou. Esta era uma opinião partilhada há dias na CNN por Henry Hale, professor de Relações Internacionais da Universidade George Washington, ao referir que a sondagem reflecte a realidade na sociedade russa. Até porque, as manifestações internas de pesar pela morte Nemtsov estão longe de representar uma corrente maioritária na opinião pública russa contra o seu Governo.

É importante notar que os russos nunca experimentaram outro tipo de regime e jamais se abriram aos seus vizinhos europeus. Esta vivência foi acumulando um pessimismo reinante, ensombrando qualquer perspectiva sobre o futuro da sociedade. Uma realidade que se tornou particularmente evidente nos anos de Boris Yeltsin, na ressaca da queda do império e na emergência de um clima de anarquia e caos.

De um momento para o outro, os russos viam-se sem a tradicional liderança forte e absoluta, assistindo à deterioração do império e de toda a estrutura social sem compensações evidentes. Democracia e liberdade, tal como os ocidentais as entendem, são conceitos estranhos àquela sociedade.

Há sensivelmente 10 anos, Richard Pipes, hoje com 91 anos, conceituado especialista da história russa e antigo director do departamento de assuntos soviéticos da Europa de Leste no Conselho de Segurança Nacional em 1981-82, escrevia um extraordinário artigo na Foreign Affairs, especificando o que de facto os russos queriam para a sua sociedade.

Uma das ideias-chave defendidas pelo autor referia que os russos apoiavam o estilo “antiliberdade e antidemocrático” de Putin, sustentando, com estudos de opinião, que apenas um em cada dez russos se interessava por “liberdades democráticas e direitos civis”.

Na verdade, estes e outros conceitos, como propriedade privada e justiça pública, nunca fizeram parte da tradição russa. Por exemplo, apenas cerca de um quarto da população russa considerava que a propriedade privada era importante como direito humano. Isto apenas há dez anos, note-se.

Pipes sustentava as suas afirmações em estudos levados a cabo pelo All-Russian Center for Study of Public Opinion e pelo Institute of Complex Social Studies da Academia de Ciências Russa. De acordo com os dados obtidos na altura, 78 por cento dos russos considerava que a “democracia era uma fachada para um governo controlado pelos ricos e grupos poderosos". Apenas 22 por cento expressava preferência pela democracia, contra os 53 por cento que se lhe opunham. Sobre os eventuais benefícios das eleições multipartidárias, 52 por cento dos russos considerava que estas eram prejudiciais, sendo apenas 15 por cento a percentagem de russos que as viam como positivas.

Numa outra sondagem da mesma altura, do Centro de Estudos Sociológicos da Universidade de Moscovo, citada por Pipes, 82 por cento dos russos estavam convictos de que não tinham qualquer influência no Governo nacional, e 78 por cento acrescentava mesmo que não influenciava os desígnios do governo local. Mais interessante, mas pouco surpreendente, era a escolha feita entre “liberdade” e “ordem”. Oitenta e oito por cento dos inquiridos na província de Voronezh manifestaram preferência pela “ordem”. Apenas 11 por cento afirmaram não estar dispostos a abdicar das suas liberdades de expressão e de imprensa em troca de estabilidade. Na verdade, um outro estudo, conduzido no Inverno de 2003-04, pela Romir Monitoring, sustentava que 76 por cento dos russos eram favoráveis à reposição da censura nos “media”.

Estes números reflectiam uma avidez, por parte do povo russo, de autoritarismo governativo. Uma exigência apreendida pelos políticos que, segundo Pipes, se manifestou nas eleições para a Duma, em Dezembro de 2003, nas quais nenhum dos partidos mais votados utilizou, sequer por uma vez, a palavra “liberdade”. Um dos outros anseios do povo russo prendia-se com o poder da sua nação, sendo que 78 por cento insistia que a Rússia tinha de ser “uma grande potência”.

A questão é saber se, dez anos depois destas observações feitas por Pipes, a percepção do povo russo em relação aos seus líderes e ao modelo de governação se alterou? A julgar por aquilo que se vai vendo, lendo, e pelos vários estudos de opinião que se vão conhecendo, provavelmente, não terá mudado assim tanto.

Trata-se de um território imenso que, desde o século XIX, tem tentado manter o estatuto de potência entre as potências. Na altura em que tentava expandir a sua presença sobre a Sublime Porta e os Balcãs, a Rússia era tida como “instável e intrometida” nos interesses que se jogavam no Velho Continente. Os líderes europeus olhavam-na com desconfiança, tentando ler à luz da realpolitik o comportamento de Moscovo, tal como hoje, os interlocutores de Putin, desprovidos de qualquer abordagem idealista, terão de compreender os intentos e as sensibilidades do homem forte do Kremlin. Já o famoso Metternich, chanceler do império austro-húngaro, dizia que “o problema posto pela Rússia não era tanto o de como conter a sua agressividade, mas o de como temperar as suas ambições”.

Licenciado em Relações Internacionais e Mestre em Ciência Política; Autor do blogue O Diplomata
 

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É uma evidência histórica contra a qual nada há a fazer, apesar das ilusões que muitos ainda alimentam de que a democracia ocidental prevalecerá sobre todos os outros modelos de governação. Para já, pelo menos, isso não vai acontecer e o que se está a passar nalguns países assolados pela "Primavera Árabe" é um exemplo de que o anúncio da vitória da democracia liberal sobre todas as demais formas de Governo foi manifestamente exagerado. Ou seja, perante a oportunidade de opção, a democracia não tem sido suficientemente cativante para parte substancial dessas sociedades.

Noutros países, é mesmo a maioria dos cidadãos que nem sequer considera os valores e princípios democráticos como algo essencial nas suas vidas. É como se fosse algo genético, a aceitação pelo povo de estilos mais autoritários dos seus governantes. A Rússia é, hoje, talvez o melhor exemplo dessa forma de estar. E ao contrário de países como a Coreia do Norte — ou até mesmo a Bielorrússia e a China , no caso da Rússia já não se pode utilizar o argumento de que a população não tem acesso à informação independente ou que a liberdade de opinião está totalmente estrangulada embora ao nível da crítica política esteja muito restrita, como têm sido exemplares nos últimos anos, alguns casos de pressão ou de perseguição política, sendo o assassinato de Boris Nemtsov, o mais recente. 

Na Rússia, há claramente uma opção consciente por um estilo de governação e de liderança mais musculada. Os russos sempre aceitaram bem líderes autoritários, mas nunca foram particularmente entusiastas com governantes mais ocidentalizados, tais como Mikhail Gorbachev por muitos russos, considerado um traidor  ou Boris Yeltsin que por outros nunca foi levado muito a sério. A chegada de um homem como Vladimir Putin ao Kremlin foi vista pelos russos como o regresso dos gloriosos líderes dos tempos do império soviético.

Hoje, quando a Rússia está diplomaticamente mais isolada, quando atravessa economicamente momentos muito complicados, quando tem milhares de soldados “plantados” nalguns conflitos fronteiriços (alguns "congelados" outros mais "quentes"), Vladimir Putin consegue ter um nível de popularidade na ordem dos 85 por cento. São números divulgados recentemente, ainda antes do assassinato de Boris Nemtsov, por uma sondagem feita pelo Levada Center, uma entidade não governamental e que se diz independente, embora alguns críticos digam que estes valores não são reais. Por outro lado, há analistas que dizem que estes números correspondem, precisamente, ao apoio que Putin tem do povo, com a ressalva de que, nos últimos dias, a popularidade do Presidente russo possa ter descido um pouco.

Uma coisa é certa, mesmo admitindo que os números desta sondagem possam estar inflacionados, Putin goza de um enorme apoio popular, como, aliás, sempre gozou. Esta era uma opinião partilhada há dias na CNN por Henry Hale, professor de Relações Internacionais da Universidade George Washington, ao referir que a sondagem reflecte a realidade na sociedade russa. Até porque, as manifestações internas de pesar pela morte Nemtsov estão longe de representar uma corrente maioritária na opinião pública russa contra o seu Governo.

É importante notar que os russos nunca experimentaram outro tipo de regime e jamais se abriram aos seus vizinhos europeus. Esta vivência foi acumulando um pessimismo reinante, ensombrando qualquer perspectiva sobre o futuro da sociedade. Uma realidade que se tornou particularmente evidente nos anos de Boris Yeltsin, na ressaca da queda do império e na emergência de um clima de anarquia e caos.

De um momento para o outro, os russos viam-se sem a tradicional liderança forte e absoluta, assistindo à deterioração do império e de toda a estrutura social sem compensações evidentes. Democracia e liberdade, tal como os ocidentais as entendem, são conceitos estranhos àquela sociedade.

Há sensivelmente 10 anos, Richard Pipes, hoje com 91 anos, conceituado especialista da história russa e antigo director do departamento de assuntos soviéticos da Europa de Leste no Conselho de Segurança Nacional em 1981-82, escrevia um extraordinário artigo na Foreign Affairs, especificando o que de facto os russos queriam para a sua sociedade.

Uma das ideias-chave defendidas pelo autor referia que os russos apoiavam o estilo “antiliberdade e antidemocrático” de Putin, sustentando, com estudos de opinião, que apenas um em cada dez russos se interessava por “liberdades democráticas e direitos civis”.

Na verdade, estes e outros conceitos, como propriedade privada e justiça pública, nunca fizeram parte da tradição russa. Por exemplo, apenas cerca de um quarto da população russa considerava que a propriedade privada era importante como direito humano. Isto apenas há dez anos, note-se.

Pipes sustentava as suas afirmações em estudos levados a cabo pelo All-Russian Center for Study of Public Opinion e pelo Institute of Complex Social Studies da Academia de Ciências Russa. De acordo com os dados obtidos na altura, 78 por cento dos russos considerava que a “democracia era uma fachada para um governo controlado pelos ricos e grupos poderosos". Apenas 22 por cento expressava preferência pela democracia, contra os 53 por cento que se lhe opunham. Sobre os eventuais benefícios das eleições multipartidárias, 52 por cento dos russos considerava que estas eram prejudiciais, sendo apenas 15 por cento a percentagem de russos que as viam como positivas.

Numa outra sondagem da mesma altura, do Centro de Estudos Sociológicos da Universidade de Moscovo, citada por Pipes, 82 por cento dos russos estavam convictos de que não tinham qualquer influência no Governo nacional, e 78 por cento acrescentava mesmo que não influenciava os desígnios do governo local. Mais interessante, mas pouco surpreendente, era a escolha feita entre “liberdade” e “ordem”. Oitenta e oito por cento dos inquiridos na província de Voronezh manifestaram preferência pela “ordem”. Apenas 11 por cento afirmaram não estar dispostos a abdicar das suas liberdades de expressão e de imprensa em troca de estabilidade. Na verdade, um outro estudo, conduzido no Inverno de 2003-04, pela Romir Monitoring, sustentava que 76 por cento dos russos eram favoráveis à reposição da censura nos “media”.

Estes números reflectiam uma avidez, por parte do povo russo, de autoritarismo governativo. Uma exigência apreendida pelos políticos que, segundo Pipes, se manifestou nas eleições para a Duma, em Dezembro de 2003, nas quais nenhum dos partidos mais votados utilizou, sequer por uma vez, a palavra “liberdade”. Um dos outros anseios do povo russo prendia-se com o poder da sua nação, sendo que 78 por cento insistia que a Rússia tinha de ser “uma grande potência”.

A questão é saber se, dez anos depois destas observações feitas por Pipes, a percepção do povo russo em relação aos seus líderes e ao modelo de governação se alterou? A julgar por aquilo que se vai vendo, lendo, e pelos vários estudos de opinião que se vão conhecendo, provavelmente, não terá mudado assim tanto.

Trata-se de um território imenso que, desde o século XIX, tem tentado manter o estatuto de potência entre as potências. Na altura em que tentava expandir a sua presença sobre a Sublime Porta e os Balcãs, a Rússia era tida como “instável e intrometida” nos interesses que se jogavam no Velho Continente. Os líderes europeus olhavam-na com desconfiança, tentando ler à luz da realpolitik o comportamento de Moscovo, tal como hoje, os interlocutores de Putin, desprovidos de qualquer abordagem idealista, terão de compreender os intentos e as sensibilidades do homem forte do Kremlin. Já o famoso Metternich, chanceler do império austro-húngaro, dizia que “o problema posto pela Rússia não era tanto o de como conter a sua agressividade, mas o de como temperar as suas ambições”.

Licenciado em Relações Internacionais e Mestre em Ciência Política; Autor do blogue O Diplomata