Uma ópera ajuizada

El Público exibe momentos de grande beleza

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Teatro Real /Javier del Real

A presente partitura é mais um fruto da visão de Mortier: criação contemporânea baseada na recuperação de um texto teatral de vanguarda, El Público, do famoso poeta e dramaturgo espanhol do século XX, Federico García Lorca. Mobilizou-se para tal muito do que há de melhor em Espanha (compositor, libretista, maestro, artistas de flamenco), na Áustria (grupo instrumental, engenheiros de som), na Alemanha (cenógrafo, iluminador) e nos Estados-Unidos (encenador e coreógrafo), para além do coro da casa e de uma equipa internacional de assistentes e de solistas.

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A presente partitura é mais um fruto da visão de Mortier: criação contemporânea baseada na recuperação de um texto teatral de vanguarda, El Público, do famoso poeta e dramaturgo espanhol do século XX, Federico García Lorca. Mobilizou-se para tal muito do que há de melhor em Espanha (compositor, libretista, maestro, artistas de flamenco), na Áustria (grupo instrumental, engenheiros de som), na Alemanha (cenógrafo, iluminador) e nos Estados-Unidos (encenador e coreógrafo), para além do coro da casa e de uma equipa internacional de assistentes e de solistas.

O resultado é de um profissionalismo difícil de superar. Mas poderá a energia de Lorca, tão bem enquadrada do ponto de vista técnico, obter uma projecção fecunda perante um público tradicionalmente conservador? Curiosamente, as clareiras deixadas na plateia, após o intervalo, pelos mais insatisfeitos ou chocados de entre os assistentes, foram bastante esparsas. Na verdade, esta ópera é um espectáculo coerente, rico, variado, surpreendente — e bastante gay — mas no fim de contas, muito ajuizado.

Para isso contribuem duas decisões solidárias do libretista e do compositor: o respeito geral pela forma como Lorca nos deixou o texto, e a vontade de valorizar, na sua execução, a clareza declamatória. Ambas decisões são individualmente virtuosas, mas entrelaçadas, têm o efeito de estender demasiado a ópera (duas horas e meia) e impedir a exploração polifónica do material, que lhe poderia conferir uma maior profundidade expressiva.

Mauricio Sotelo é mais simbolista que expressionista. A irracionalidade é por ele simbolicamente atribuída à irrupção do flamenco, e com isso, descarta-se da necessidade de a figurar por música inteiramente sua; música essa que submete a um rígido controle, aprendido na escola germânica; controle este que apresenta como garante de validade estética.

O flamenco surge como plataforma de entendimento entre diferentes mundos sonoros, rugosidade calculada e reserva retórica; mas aparece com a própria racionalidade, mais estreita do que a do seu entorno. Não há momento em que a opção apolínia de Sotelo seja mais notória do que a introdução de uma dança flamenca no exacto momento em que a lascívia entre Julieta e os cavalos prepara um clímax: a bomba musical é desarmada, para alívio do público burguês, por uma coreografia eivada de convencionalismo.

Usando uma imagem de Lorca, é como se o compositor tivesse tido medo de que, ao arrancar a sua máscara de protagonista no sistema de produção musical hegemónico, viessem agarrados os seus intestinos. Contudo, embora recuse o expressionismo dionisíaco, Sotelo é um compositor sensível, atento aos matizes emocionais, com um sentido agudo da cor, do movimento e da proporção.

Para além de incorporar com mestria, tornando compatíveis, referências culturais e tipos de emissão sonora originalmente díspares, El Público exibe momentos de grande beleza, por exemplo, no segundo quadro (Tangos lentos), diálogo entre Figura de Cascabeles e Figura de Pámpanos; no terceiro, em particular a longa ária de Julieta (perto de cem compassos); e no eco coral de "un mar de tierra blanca", no final do quarto quadro (não consta do original).

A produção da ópera conta, para além disso, com intérpretes excelentes: não apenas os artistas de flamenco, mas também, entre muitos outros, os barítonos José António Lopez (Director), Thomas Tatzl (Homem 1º) e a jovem Isabella Gaudí (Julieta). A cenografia (Alexander Polzin) é económica e eficaz, com figurinos apropriadamente estapafúrdios (Wojciech Dzidzic), e uma encenação milimétricamente cuidada e expressiva (Robert Castro, com o coreógrafo Darrell Grand Moultrie). O público, ajuizadamente, pode apostar nestes cavalos.
 
O crítico esteve em Madrid a convite do Teatro Real