A histeria e o direito à dúvida

Num artigo publicado na New Yorker, o crítico e ensaísta Lee Siegel pede que se aplique ao livro que aí vem de Harper Lee o mesmo que Atticus Finch, o advogado do inocente, pediu ao tribunal em Mataram a Cotovia: dêem-lhe o benefício da dúvida. Ao Ípsilon, Siegel explicou o que está aqui em causa

Foto
Harper Lee com Gregory Peck, intérprete da versão cinematográfica de Mataram a Cotovia, livro que, afinal, teve um antecessor

No fim do jantar ela disse-lhe que ele tinha sido uma companhia fantástica: “O senhor é um dos melhores companheiros de jantar que tive o prazer de ter a meu lado”. Siegel, crítico, escritor, ensaísta, recordou este episódio num artigo que assinou na revista New Yorker a propósito do misto de polémica e curiosidade ruidosa que tem rodeado o anúncio de um inédito de Harper Lee, a escritora que se pensava ser de obra única, a publicar a 14 de Julho, pela HarperCollins.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No fim do jantar ela disse-lhe que ele tinha sido uma companhia fantástica: “O senhor é um dos melhores companheiros de jantar que tive o prazer de ter a meu lado”. Siegel, crítico, escritor, ensaísta, recordou este episódio num artigo que assinou na revista New Yorker a propósito do misto de polémica e curiosidade ruidosa que tem rodeado o anúncio de um inédito de Harper Lee, a escritora que se pensava ser de obra única, a publicar a 14 de Julho, pela HarperCollins.

“A polémica é uma fabricação dos media que estão simultaneamente zangados e a viver um momento aborrecido”, tudo combinado com uma natural curiosidade acerca de uma autora famosa que vive em semi-reclusão. “As pessoas querem ler a sequela de um livro que aprenderam a acarinhar desde crianças”, justifica, falando também de uma nostalgia de um tempo que antecede a Internet e em que os livros eram o centro da cultura. São variáveis a considerar numa análise que tem sido, na opinião de Siegel, marcada pela histeria.

Com opiniões apaixonadas entre os que aplaudem e os que criticam o lançamento do livro num momento em que se questiona acerca da condição de saúde de Harper Lee e do que este novo título pode representar para a imagem da escritora, o crítico chama a atenção para essa aura comparável à de autores como J.D. Salinger, outro escritor que escolheu retirar-se dos olhares públicos.

“Como ele, ela é um enigma e isso, por si só, atrai muitas atenções”. Quanto às preocupações acerca da qualidade do que aí vem, diz que todas as observações que lhe chegam o tiram do sério. “É absurdo. Ninguém o leu, e mesmo que seja terrível, dificilmente afectará a reputação de Mataram a Cotovia. Nesta era digital toda a gente que escreve anda à procura de um assunto e parece-me que Go Set a Watchman é um bom assunto.”

No artigo na New Yorker, Lee Siegel faz a ponte entre a grande mensagem do livro anterior, quando Atticus Finch pede ao tribunal para dar o benefício da dúvida ao homem que está a defender e que está a ser falsamente acusado de violação, para aplicar agora em relação ao novo livro de Harper Lee: “Dêem-lhe o benefício da dúvida”.

Lembra que a escritora não mentiu sobre não escrever mais: o livro foi escrito antes de Mataram a Cotovia.

“Esta é uma primeira versão que vai ser publicada. Se as pessoas se sentem desconfortáveis com isso é porque estão a usar a ocasião para expressar a sua revolta contra a ascendência do poder do mercado e tornam a publicação de Go Set a Watchman um produto da sua raiva. Eu sou capaz de entender isso, mas isso não tem nada a ver com o romance.”

Sobre o que representa Mataram a Cotovia para as gerações mais novas, não tem uma ponta de romantismo. “Para ser honesto, acho que não significa nada para os mais jovens. Para quem, como nós, o leram enquanto os negros lutavam pela sua igualdade nas mais variadas formas, teve uma força moral muito grande e fez parte das nossas vidas. Acho que o filme [de Robert Mulligam, 1962] é mais relevante para os mais novos, mas duvido que muitos o tenham visto.”

Mas o livro importa, sublinha, continua a importar enquanto símbolo. “É um símbolo de tudo quanto tem falhado na nossa cultura, de muita coisa que está em queda e que é essencial. Dá uma noção muito forte acerca de conceitos como bem e mal, certo e errado, de personalidades bem delineadas. E do poder da literatura. Acho que esse poder enquanto símbolo cultural é que está a animar as pessoas e não o poder da obra de arte.”