Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon

Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005.

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As suas personagens sãs os cartoonistas, doze ao todo, e vêm dos EUA, França, Tunísia, Costa do Marfim, Argélia, Israel, Palestina, Rússia ou China. Um retrato global desenhado a partir de diferentes geografias, contextos culturais e históricos e que Plantu (Jean Plantureux), cartoonista do Le Monde inaugura com uma sucessão de frases: “Uma escuridão instala-se sobre o mundo e o desenho é uma boa forma de lhe escapar. A democracia é uma luta que se trava todos os dias. Nunca está ganha”.

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As suas personagens sãs os cartoonistas, doze ao todo, e vêm dos EUA, França, Tunísia, Costa do Marfim, Argélia, Israel, Palestina, Rússia ou China. Um retrato global desenhado a partir de diferentes geografias, contextos culturais e históricos e que Plantu (Jean Plantureux), cartoonista do Le Monde inaugura com uma sucessão de frases: “Uma escuridão instala-se sobre o mundo e o desenho é uma boa forma de lhe escapar. A democracia é uma luta que se trava todos os dias. Nunca está ganha”.

Ao telefone, de Paris, a realizadora Stéphanie Valloatto anui com um entusiasmo urgente, antes de revelar a génese do documentário. “Começou com a sugestão de um amigo, o Radu Mihaileanu. Falou-me da criação do Cartooning for Peace [associação internacional criada em 2006 por Plantu] e desafiou-me e pensar num documentário sobre o trabalho dos desenhadores humorísticos. Achei uma ideia muito bonita e avançámos”. A escolha dos autores e as filmagens não se realizariam sem obstáculos e dúvidas, apesar da ajuda preciosa da associação e de Plantu. “Demorámos a chegar aos artistas africanos, mas conseguirmos”, conta a realizadora. “Muito mais complicado foi encontrar um artista asiático. O primeiro cartoonista chinês em que pensámos não quis falar. Temia ser preso. Tivemos a sorte de encontrar o Pi San”.

É por intermédio de Pi San, conhecido pelos seus desenhos animados controversos, que o artista plástico Ai Weiwei faz uma curta e inesperada aparição. Weiwei não é cartoonista, mas a repressão de que foi alvo (está proibido pelas autoridades de sair da China) não é estranha à venezuelana Rayma Suprani, ao russo Mikhail Zlatkovsky ou ao argelino Slim (Menouar Merabtene). Há nos gestos destes a apreensão das pessoas acossadas, uma resignação dolorosa, embora não deixam de falar, de mostrar os seus desenhos, de fitar a câmara. “Achei importante mostrar os seus rostos, as suas casas, os ateliês onde trabalham, a sua intimidade. Quis tirá-los das sombras, onde costumam ficar, mas eles também quiseram sair. Iluminei-os um pouco e curiosamente disseram-me que agora, sob a luz, se sentem mais protegidos”.

Escrevia-se que os cartoonistas são as personagens do documentário. Acrescente-se outra. Invisível, “abstracta”, a democracia moderna vive nos desejos e na angústia dos retratados. “Sim, concordo. Quis mostrar o grau da democracia no mundo a partir dos cartoonistas, quis mostrar as dificuldades que eles enfrentam nas suas actividades. Por serem mulheres, como a Rayna ou Nadia [Khiari, criadora do gato irónico, Willis from Tunis], por causa da ascensão do fundamentalismo religioso ou da pressão dos políticos que o Plantu descreve. Creio que a actividade dos cartoonistas pode servir como barómetro da democracia, eles antecipam ameaças, assinalam sintomas”.

Canários numa mina de carvão
Para Stéphanie Valloat, a metáfora bélica do título de documentário assenta bem aos cartoonistas. Estão na frente, antes dos jornalistas e outros formadores de opinião. São os primeiros a sofrer ataques e retaliações, como testemunham Slim e Baha Boukhari. O primeiro na Argélia, o segundo na Palestina, satirizaram, respectivamente o governo argelino pós-independência, e o líder do Hamas, Ismaïl Haniyeh. O desfecho? A economia dos seus desenhos foi inversamente proporcional à violência da reação do poder político: foram ameaçados e censurados. Porquê? O que torna os cartoonistas tão expostos à violência?

“Nas sociedades modernas, eles acabaram por se transformar em expoentes das fronteiras da liberdade de expressão”, diz o historiador de arte dinamarquês Matthias Wivel. “São mais visíveis do que qualquer outro grupo, em parte porque a sua arte cristaliza, com uma eficácia invulgar, as questões associadas a esse tema. São como canários numa mina de carvão”. Especialista em arte do Renascimento, banda desenhada e desenho humorístico, Wivel faz no entanto uma ressalva importante. “Não acho que o cartoon seja uma arte da democracia moderna. É uma forma de sintetizar a escrita e o desenho, de tipificar a realidade. Pode ser usado com vários propósitos, inclusive anti-democráticos. Um dos exemplos mais infames desse uso esteve, por exemplo, nos cartoons anti-semitas do Der Stürmer [semanário oficial do regime nazi] ”. Mas não pode a vitalidade do cartoon andar a compasso do vigor da democracia? “Sim, admito que sim. A qualidade de uma democracia pode ser medida pela capacidade que tem em acomodar diferentes pontos de vista, incluindo os anti-democráticos”.

No documentário, há um ponto de vista e pertence à sociedade dessa democracia. É ela que olha para aos cartoonistas, sem juízos prévios ou analogias forçadas. Pelas palavras e memórias dos intervenientes, o espectador sabe que se confronta com contextos e histórias distintas. “A democracia tem graus diferentes na China, na Venezuela e no Burkina-Faso. Quando falamos de democracia na da Rússia, não estamos a falar da democracia nos Estados Unidos ou em França. Cada cartoonista fala da sua sociedade, da sua cultura”, sublinha a realizadora. Essa consciência manifesta-se nas desilusões expressas por Nadia Khiria, que, depois da Revolução de Jasmim, na Tunísia, nunca imaginou usar tanto o vermelho nos seus desenhos ou na prudência corajosa de Pi Sang, que reconhece a existências de linhas que não devem ser ultrapassadas.

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Rayma Suprani acreditava que, depois da morte de Hugo Chavez, teria mais liberdade, mas foi despedida do jornal onde trabalhava depois de satirizar o regime de Maduro DR

Satirizar Vladimir Putin é, na Rússia, uma dessas linhas, como é na Venezuela caricaturar Nicolás Maduro. Quando ultrapassadas, as consequências são descritas no documentário: perseguição, proibição de desenhar, despedimentos sumários. Insultos e ameaças. A repressão é tão forte que as canetas e os lápis se tapam, nem que seja temporariamente, como conta Slim traumatizado com a violência da Guerra Civil da Argélia (1992-2002).

Nas democracias ocidentais também existem limites, mas tendem a ser definidas pelas regras do próprio sistema democrático. “Nas leis que proíbem que se ridicularize o chefe de estado ou que proíbem a blasfémia, por exemplo, na Inglaterra, em relação à região anglicana, encontramos linhas vermelhas”, exemplifica João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política da Universidade do Minho. Já nos Estados Unidos, legislação semelhante dá lugar a pressões de caracter social, das comunidades, das associações”. “Os jornais americanos não publicaram as caricaturas de Maomé”, lembra. “E não o fizeram por causa da pressão social, porque existe um cuidado especial quando se trata de religiões. Não é propriamente uma linha vermelha legal, mas social e política. E isso existe em qualquer democracia. A democracia é feita de instuitições e de comunidades. Resta ao cartoonista adaptar-se aos contextos, caso contrário, corre o risco de não ser compreendido, de não encontrar o seu púbico. Não há liberdade absoluta, mesmo nas democracias”.

Uma arte num mundo globalizado
Numa das cenas do documentário, o cartoonista americano Jeff Danziger revê um dos seus mais polémicos desenhos (Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA, é um dos visados) e deixa escapar que não o assinou. Medo de represálias, pressões? “Ele de facto sentiu-me incomodado com esse desenho [risos]”, revela Stéphanie Valloato. “Os Estados Unidos não são uma ditadura, mas também aí existem linhas vermelhas. Evita-se escrever sobre sexo, sobre os pobres e os ricos, sobre as minorias, sobre o poder financeiro”. Por vezes, a autocensura é um dos meios que os cartoonistas encontram de fazer à frente às pressões, de sobreviver. Retraem-se conscientes de que o estão a fazer. Ora, para Michel Kichka, cartoonista belga-israelita, descendente de sobreviventes do Holocausto, quem receia magoar os outros com o seu desenho deve procurar outra profissão. A sátira magoa e não é compatível com o politicamente correcto. “Essa é uma tendência que vai dominando na Europa e nos EUA”, acrescenta a realizadora. “A dada altura não podemos falar, não podemos ter uma opinião. Temos todos que pensar com a mesma cabeça. De tanto se defender a diferença, ataca-se a diferença de opinião. Simplesmente, não podemos dizer aquilo que pensamos.”

A outra ameaça que no filme paira sobre muitos dos cartoonistas é a do fundamentalismo religioso islâmico. Em segundo ou em primeiro plano, dito ou não dito, faz sentir a sua presença nos depoimentos dos entrevistados ou em imagens de arquivo. “É por causa das caricaturas de Maomé publicadas em 2005 num jornal dinamarquês que andamos a falar tanto de cartoonistas. Tudo começou aí”, afirma João Cardoso Rosas. “Há um contexto específico muito importante, que é o regresso da questão religiosa à Europa e a oposição entre a liberdade de expressão e uma ortodoxia religiosa. E os cartoonistas, com a sátira e a blasfémia estão no centro dessa oposição. Através do seu trabalho entram em conflito com uma sensibilidade religiosa que é a dos muçulmanos”.

Stéphanie Valloato estava ciente da tensão criada por tal oposição, mas não anteviu a tragédia do dia 7 de Janeiro. “No que respeito ao massacre do Charlie Hebdo, há claramente um antes e depois. Sabíamos que os cartoonistas eram perseguidos e assassinados noutros países, mas não imaginámos que isso pudesse acontecer em Paris, no século XXI. Isso não imaginávamos, confesso” Para Matthias Wivel acresce outro factor que vem ampliar a ressonância desse conflito. É, aliás, o mesmo que permitiu o nascimento do documentário. “Vivemos num mundo globalizado em que a informação e a desinformação são transmitidas instantaneamente pelo mundo inteiro para serem interpretadas em contextos muito diversos. Isto criou uma nova situação para os cartoons satíricos que historicamente sempre foram muito dependentes de contextos locais. Veja o Charlie-Hebdo ou Jylands-Posten [o jornal dinamarquês que publicou as caricaturas de Maomé]. Não pensaram, creio eu, que os seus desenhos viessem a provocar este impacto. Os cartoonistas tornaram-se símbolos de algo que não previram e que está relacionado com a circulação rápida e livre da informação”.

Sem menosprezar os efeitos da globalização, vale a pena constatar a adaptação do desenho, satírico enquanto arte e técnica, ao mundo criado pelas tecnologias de informação. A actividade de Nadia Khiaria é nesse aspecto exemplar. Foi nas redes socias que esta artista criou e divulgou Willis From Tunis, série de cartoons que acompanharam, na forma de comentários irónicos, os avanços e recuos da Revolução de Jasmin. “O desenho humorístico é muito claro, tem pouco texto. Adapta-se a todos suportes, sejam digitais ou analógicos”, diz Wivel. “Parafraseando Art Spiegelman [o autor de Maus] por vezes é mais difícil não conseguir ler um cartoon, do que lê-lo”.

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Depois da Perestroika, Mikhail Zlatkovsky percebeu que os tempos tinham mudado e, sem perder a boa disposição, parou de desenhar o homem do Kremlin DR
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Veterano da Guerra do Vietname, Jeff Danziger teve em George W Bush, Dick Cheney e nas hierarquias militares dos EUA os seus alvos preferidos DR

E ler um cartoon pode ter um efeito terapêutico, como lembram (quase) todos os retratados. Rir pode ser, no filme, um antídoto contra o absurdo, a violência, a guerra, a estupidez. Protege-nos do poder e da vaidade. É na sua expressão que os cartoons prosperam. O que poderiam fazer diante do muro da Cisjordânia, da prepotência de Putin ou de Maduro, da ambição de Zarkozy, do fanatismo religioso, senão fazer rir? “Sem o humor, o mundo tornar-se-ia insuportável. Um sítio inabitável”, conclui Stéphanie Valloato.