Giorgio Grassi: “A arquitectura? Estou jubilado, agora prefiro ir à pesca”

É uma referência da arquitectura italiana e europeia do último meio século. Veio na última semana ao Porto lançar um livro e dar uma aula aberta sobre a sua obra. Mostrou-se como sempre foi: ácido, conservador, fugidio, mas ao mesmo tempo simpático e divertido.

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Giorgio Grassi (n. Milão, 1935) foi o último convidado do ciclo de “aulas magnas” do ano inaugural do Curso de Estudos Avançados em Projecto, da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP). Na tarde de quinta-feira, viu o Auditório Fernando Távora da escola encher-se de alunos (e também de muitos arquitectos) para o verem e ouvirem falar de algo aparentemente tão árido como O objecto do projecto e o seu modelo. A sessão serviu também para a apresentação de Leon Battista Alberti e a Arquitectura Romana (2007), o primeiro de uma série de seis livros com que a Fundação Marques da Silva e a editora Afrontamento vão publicar em português a opera omnia sic – o mesmo é dizer, as obras completas de Giorgio Grassi.

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Giorgio Grassi (n. Milão, 1935) foi o último convidado do ciclo de “aulas magnas” do ano inaugural do Curso de Estudos Avançados em Projecto, da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP). Na tarde de quinta-feira, viu o Auditório Fernando Távora da escola encher-se de alunos (e também de muitos arquitectos) para o verem e ouvirem falar de algo aparentemente tão árido como O objecto do projecto e o seu modelo. A sessão serviu também para a apresentação de Leon Battista Alberti e a Arquitectura Romana (2007), o primeiro de uma série de seis livros com que a Fundação Marques da Silva e a editora Afrontamento vão publicar em português a opera omnia sic – o mesmo é dizer, as obras completas de Giorgio Grassi.

“É uma loucura!” Na véspera da sessão na FAUP, o arquitecto comentava assim, para o PÚBLICO, a anunciada tradução para português dos seus textos. E só lamentava que a sua idade possa vir a impedi-lo de assistir à edição de toda a colecção, prevista para sair à razão de um volume por ano.

Ainda que seja o primeiro a ser publicado, Leon Battista Alberti e a Arquitectura Romana é o quarto volume da colecção; o próximo a sair será Escritos Escolhidos, 1965-2015, uma colectânea revista e aumentada (relativamente à edição italiana, de 2000) da produção teórica de Grassi.

José Miguel Rodrigues, arquitecto e professor na FAUP, tradutor do primeiro volume e principal responsável por este projecto editorial, explica esta ordenação não cronológica pelo facto de o livro sobre Alberti não estar actualmente disponível se não na língua original italiana, e ao mesmo tempo o considerar “uma obra fundamental para os estudantes portugueses”. Daí a sua decisão de avançar para a tradução. “Esta é a sua obra mais conseguida como livro de Arquitectura”, diz José Miguel Rodrigues ao PÚBLICO, realçando que, ao falar da vida e da obra do arquitecto renascentista Leon Alberti (1404-1472), “Grassi está a falar de si próprio e das suas próprias obras”. Além disso, “o livro tem um certo ar de romance”, acrescenta.

“É verdade que escrevi este livro porque fui obrigado”, confessa o autor, entre risos. “Mas, depois, admito que saiu muito pessoal; saiu um livro de um arquitecto e não de um historiador”.

Num edifício de Siza

 Na véspera da sessão na FAUP, Giorgio Grassi aceitara falar com o PÚBLICO. Aquilo que inicialmente imaginámos que poderia ser uma entrevista formal, resultou, afinal, num animado encontro com muita gente – o director da FAUP, o editor, o tradutor, o apresentador, a assistente, a relações públicas… – à volta do arquitecto italiano, que, de forma sempre amável e divertida, se foi sucessivamente esquivando a responder às perguntas que lhe lançámos.

Depois de uma primeira visita guiada à faculdade projectada por Álvaro Siza – refira-se que esta foi a terceira passagem do arquitecto italiano pelo Porto, depois de duas anteriores no início e no final dos anos 90 –, Grassi condescendeu em elogiar o edifício. “Está muito bem. Siza é um arquitecto que admiro muito – é um dos pouquíssimos” (risos). Conhecem-se desde a década de 1980: “Do tempo de Bonjour Tristesse, em Berlim, quando eu vivi um ano na cidade”, explica o arquitecto italiano, acrescentando que o viu depois várias vezes no seu país natal, nomeadamente aquando da exposição sobre o arquitecto português organizada por Vittorio Gregotti.

“Não quero entrar em detalhes, mas de Siza interessa-me, primeiro que tudo, a sua postura no trabalho da arquitectura”, realça Grassi. Mas, no caso da FAUP, disse gostar também da “diferenciação da escola por blocos e cursos – dá-me vontade de ver melhor”. (E, no dia seguinte, quis ir ver também o Museu de Serralves).

De Siza para a história do movimento moderno e para a situação actual da arquitectura foi um salto, com muitas elipses pelo meio. “Quando falamos do movimento moderno, falamos de três ou quatro nomes, o Mies [van der Rohe], o Aldo [Rossi] e, sem dúvida, o Corbusier – é absurdo, por exemplo, que não se fale mais dele”, dispara Grassi, para logo enumerar os seus ódios de estimação: “Agora fala-se de [Frank] Gehry, da [Zaha] Hadid, que não têm nenhuma expressão cultural”.

 
“O rei vai nu”

 Logo de seguida, um remoque aos jornalistas e às revistas de Arquitectura, aos quais – acusa Grassi – “apenas interessa a fantasia, sem nenhuma relação com o sentido mesmo da palavra arquitectura; e não têm a coragem de dizer: ‘O rei vai nu’”.

A uma pergunta específica sobre o polémico e muito mediático MaXXI – Museu de Arte Contemporânea de Roma, projectado por Zaha Hadid, responde: “Nunca vi. Tive uma vez uma reunião para uma cátedra a dez metros desse edifício, mas não passei por lá, escolhi outra rua!...”

Giorgio Grassi, cuja extensa obra se encontra dispersa por várias cidades da Europa – especialmente em Berlim (onde projectou o complexo ABB Roland Ernst na Potsdammer Platz; foi distinguido, em 2003, com o Architektur-Preis Berlin, e é membro honorário da Bund Deutscher Architekten), Valência (foi professor na escola de Arquitectura ETS e recebeu o Prémio de Arquitectura da Comunidade Valenciana, em 1985) e Groningen, na Holanda (onde desenhou a biblioteca pública, 1989-92) –, lamenta agora que todas as cidades europeias pareçam iguais. “Esta situação de os arquitectos quererem todos tornar-se artistas está a destruir as nossas cidades. Eu já não sei se estou em Milão, ou em Berlim, ou em Londres – é tudo igual”.

Pessimista? “Não vejo nada de positivo. Há uma opinião comum, muito difundida, de que a arquitectura é o produto de uma mente genial que oferece coisas novas, diferentes. Na verdade, não têm nenhuma relação com o que é a vida quotidiana. E a vida quotidiana é também a sua história, com as suas mudanças, que amadurecem com o tempo, não mudam de um golpe, assim, de uma só vez”, nota.

 
Um mestre para Souto de Moura

Já retirado da actividade, tanto de projectista como de teórico – o seu último livro mais recente é uma autobiografia, Vida de Arquitecto, de 2008 –, Grassi diz-se agora mais interessado em falar de outras coisas. “Quando me fazem perguntas sobre arquitectura, respondo: ‘Estou jubilado, agora prefiro ir à pesca’”.

Mas, naturalmente, não consegue deixar de falar – e de intervir – na arquitectura. Foi isso que fez na tarde de quinta-feira, no Auditório Fernando Távora. Antes da sessão, o director da FAUP, Carlos Guimarães, explicou ao PÚBLICO que a escolha de Grassi para participar no curso foi justificada precisamente “pela sua postura crítica, pelo distanciamento perante o star-system, pela capacidade de analisar a realidade da arquitectura e de fazer algo para a fazer avançar a partir de uma cultura densa, não indo atrás da moda da cenografia, da linguagem fácil”.

Na sessão, Grassi foi primeiramente apresentado pelo professor Carlos Machado, que desfiou a extensa biografia do arquitecto italiano e destacou a sua linguagem “directa, imediata, o mais banal possível”, mas marcada por uma “profunda humanidade e humor”.

Depois, falou Eduardo Souto de Moura, que foi, de resto, o responsável pela escolha de Grassi para integrar a lista de arquitectos estrangeiros convidados a vir falar aos estudantes do Curso de Estudos Avançados em Projecto. E tinha sido já também um dos organizadores da primeira visita do italiano ao Porto, em 1990.

Souto de Moura falou de Grassi como “um mestre”, que o marcou quando era estudante e também depois, já na sua actividade de arquitecto, pela importância que a sua obra e a sua reflexão teórica – “que não podem ser separadas”, nota – tiveram, por exemplo, nos seus trabalhos de restauro do mosteiro de Santa Maria do Bouro (agora pousada), em Amares, e do convento das Bernardas (agora hotel), em Tavira. “Com Grassi aprendi a ver a ruína como objecto de debate, matéria de trabalho, mas recusando sempre o pitoresco”.

Lembrando o carácter sempre polémico do arquitecto italiano, característica que este parece ter vindo a refinar com o tempo, Souto de Moura, em declaração ao PÚBLICO, notou que “Grassi propôs uma coisa, que na altura era considerado reaccionário e tecnocrata, que era a autonomia da disciplina da arquitectura”. “Quando andávamos a discutir a crise da arquitectura indo buscar as metodologias das ciências sociais – a linguística, a sociologia, a antropologia… –, ele defendia que era a arquitectura e mais nada”.

E foi ainda (e sempre) de arquitectura que Grassi falou à plateia da FAUP, fazendo um percurso pela sua obra, desde a já demolida Casa dos Estudantes na cidade italiana de Chieti (1976)  “foi uma história desgraçada”, recordou – até à polémica intervenção no Teatro Romano de Sagunto, perto de Valência (1985), que esteve quase para ser demolida – “só não o foi porque isso custava muito dinheiro”, gracejou Grassi –, e que muita gente, incluindo Souto de Moura, vê como um dos pontos altos da sua obra, ao lado da Biblioteca da Campus Universitário de Valência (1990-98), ou da nova sede da Cassa di Risparmio em Florença (2004-08).

Uma obra e uma postura sobre a arquitectura que Grassi sintetizou, parafraseando aquilo que Robert Bresson um dia disse sobre o cinema: “Uma arquitectura é bela quando me dá uma ideia elevada de arquitectura”.