Alemanha brinca com o fogo na Grécia

Sempre que existe uma oportunidade para mostrar um lampejo de sentido patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza.

Foi assim com a notícia da vitória do Syriza na Grécia, com o anúncio das primeiras posições do Governo grego e foi assim com a proposta grega de uma conferência internacional sobre a dívida. Tudo acontecimentos que qualquer Governo português, independentemente da sua cor política, deveria receber com algum agrado, porque reforçam a nossa posição negocial como credores no seio da União Europeia, mas que Passos Coelho preferiu criticar ecoando os ditames da voz do dono. O Governo grego quer defender a dignidade e a vida dos gregos e Passos Coelho não suporta esse atrevimento. Passos Coelho nem percebe como é que Tsipras não considera uma honra servir os poderosos deste mundo e lamber a sola cardada das suas botas, deleitando-se na volúpia da submissão. Passos Coelho não é mais papista que o Papa: é apenas mais alemão do que Angela Merkel e mais obsceno do que Miguel de Vasconcelos.

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Foi assim com a notícia da vitória do Syriza na Grécia, com o anúncio das primeiras posições do Governo grego e foi assim com a proposta grega de uma conferência internacional sobre a dívida. Tudo acontecimentos que qualquer Governo português, independentemente da sua cor política, deveria receber com algum agrado, porque reforçam a nossa posição negocial como credores no seio da União Europeia, mas que Passos Coelho preferiu criticar ecoando os ditames da voz do dono. O Governo grego quer defender a dignidade e a vida dos gregos e Passos Coelho não suporta esse atrevimento. Passos Coelho nem percebe como é que Tsipras não considera uma honra servir os poderosos deste mundo e lamber a sola cardada das suas botas, deleitando-se na volúpia da submissão. Passos Coelho não é mais papista que o Papa: é apenas mais alemão do que Angela Merkel e mais obsceno do que Miguel de Vasconcelos.

2. Tsipras vai ter de voltar atrás, o Syriza vai recuar, Varoufakis tem de engolir uns sapos, a Grécia vai renegar as suas promessas, aquilo era um conto de crianças, a Alemanha vai-lhes partir as costas, as pernas, os braços, os dentes e Portugal vai ajudar com todo o gosto, a Espanha também e a Itália e a França vão ter medo de se meter ao barulho. Uma parte da imprensa nacional e internacional rejubila com a mais pequena intervenção onde um dirigente do Syriza fale sensatamente porque isso significa que estão “a recuar”.

Na realidade, a negociação ainda nem começou de facto e, como é habitual, deverá envolver múltiplos ajustamentos nas posições dos negociadores.

Muitas das vozes interessadas em enfraquecer a posição grega sublinham o facto de os gregos terem deixado de usar a expressão “perdão”, mas isso é irrelevante. A Grécia exige e precisa de renegociar a sua dívida, mas se isso é feito por corte do capital em dívida, por redução dos juros ou por alargamento dos prazos (que pode ser uma transformação de parte da dívida em dívida perpétua) é indiferente. Quanto a dívida perpétua, soubemos nos últimos tempos que a Inglaterra só agora vai pagar dívidas que contraiu no século XVIII e que a Alemanha só em 2010 pagou o que sobrava da sua dívida da I Guerra, havendo ainda hoje contas por acertar – nomeadamente com Portugal.

Em todos os casos, a renegociação da dívida grega, que terá de acontecer se não quisermos aceitar o pior, significará perdas para os credores. Mas a garantia de que irão receber é uma vantagem importante. E a manutenção de alguma concórdia na Europa também.

Como em todas as negociações, nesta é importante que nenhum dos negociadores perca a face e, por isso, é preciso dar algum desconto às declarações das várias partes. A Alemanha precisará de dizer que fez recuar a Grécia e que a obrigou a retirar a exigência de haircut. A Grécia precisa de dizer que conseguiu obrigar a UE a reescalonar pagamentos de acordo com as possibilidades da sua economia. Isto, se tudo correr bem. Mas o que é evidente para quem leia jornais é que há demasiada gente empenhada em que não corra bem e apostada em inquinar a discussão. Gente para quem é importante fazer da Grécia um exemplo para que mais nenhum governo de esquerda seja eleito na Europa, para que mais ninguém se atreva a contestar os credores ou a pôr em causa o poder da Alemanha. Por agora, Merkel tenta apagar um fogo na Ucrânia mas brinca com o fogo na Grécia.

3. Por agora, a posição da Alemanha é de total intransigência. Apesar de saber que a intransigência não permitirá que a Grécia pague a sua dívida mais cedo. Não faz sentido? Faz, se o objectivo for manter a Grécia numa eterna dependência. E, de caminho, todos os outros países devedores, como Portugal. Faz, se o objectivo for transformar a dívida numa renda eterna, de que os alemães irão beneficiar para sempre e que irá escravizar os gregos e os portugueses durante gerações. As invasões das novas guerras já não se fazem com soldados no terreno. Se se quer conquistar um país, é mais fácil escravizá-lo pela dívida.

A Alemanha, último país da Europa a usar mão-de-obra escrava em massa, conhece as vantagens do processo. Muitos dos grandes empórios alemães cresceram assim, sobre o trabalho gratuito de milhões de escravos que, durante a última guerra, chegaram a representar 20% da sua mão-de-obra e cujos sobreviventes só muito recentemente começaram a ser indemnizados com quantias pouco mais que simbólicas. Um empréstimo forçado, sem juros, com longa maturidade, ainda largamente por pagar, que não indigna os comentadores. Milhares de empresas como o Deutsche Bank, a Siemens,  a Volkswagen, a Hoechst, a Allianz, a BASF, a Bayer, a BMW cresceram assim. A Alemanha sabe que não o pode voltar a fazer, mas a escravidão da dívida assegura a melhor alternativa.

jvmalheiros@gmail.com