O gramofone é chic, é elegante, é gracioso

Machinas Fallantes, de Leonor Losa, é o mergulho num país desconhecido, nas primeiras décadas do século XX. É a história da música gravada em Portugal, entre gramofones e cantores hoje desconhecidos.

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E o jovem Alberto Santo Diniz, entusiasta das novas tecnologias do som que investigava forma de lhes introduzir melhoramentos quando a morte o colheu tragicamente aos 25 anos? E o grande Carlos Calderon, homem dos sete ofícios que compunha para teatro de revista e que, com espírito de comerciante, comercializava depois a partitura dos seus êxitos e gravava para edição em disco essas mesmas canções?

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E o jovem Alberto Santo Diniz, entusiasta das novas tecnologias do som que investigava forma de lhes introduzir melhoramentos quando a morte o colheu tragicamente aos 25 anos? E o grande Carlos Calderon, homem dos sete ofícios que compunha para teatro de revista e que, com espírito de comerciante, comercializava depois a partitura dos seus êxitos e gravava para edição em disco essas mesmas canções?

Não estranhe se nenhum destes nomes lhe é familiar. Com excepção de Carlos Calderon, não o eram igualmente para Leonor Losa, quando a investigadora do Instituto da Etnomusicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas decidiu viajar até ao início do século XX para descobrir como se dera a implantação da música gravada em Portugal, desde a chegada do fonógrafo de cilindros de Edison, cujas apresentações públicas eram descritas como “sessões de alta magia”, à dos gramofones de Berliner; e da implantação dessa tecnologia à criação de um mercado e um espaço social para a sua fruição. Agora, Leonor Losa, com trabalho publicado sobre o editor Arnaldo Trindade, fundador da Orfeu, e colaboradora nesse projecto pioneiro que foi a Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, coordenada por Salwa Castelo-Branco, conhece-os a todos.

Encontramo-los no fascinante Machinas Fallantes, livro que, enquanto nos dá conta da frenética evolução da nova tecnologia, pinta um retrato vivo e vívido da sociedade lisboeta e, em menor grau portuense, que a acolheu desde a primeira hora (a concentração da investigação tornou-se obrigatória para assegurar a sua profundidade). Deparamo-nos então com os cantores Duarte Silva, Avellino Baptista ou Ilda Stichini ou com o comerciante José Castello Branco. Deparamo-nos com a história desconhecida de um tempo em que “oferecer um gramophone é chic, é elegante, é o brinde mais gracioso”, como anunciava em 1905 a Companhia Franceza do Gramophone, na Rua Garrett. Descubramos uma história portuguesa. A da alvorada da música gravada em Portugal nas primeiras décadas do século XX - e, em parte, a do país nesse tempo.

“O que se passou em Portugal não pode ser lido à luz do que aconteceu nos outros países”, explica Leonor Losa. “A tecnologia surgiu tanto nos Estados Unidos e em Inglaterra quanto em Portugal, quase simultaneamente. Mas penetra socialmente de modos distintos”. Sim, esta é uma história portuguesa. Ouvimo-la no CD que acompanha o livro, uma edição Tinta-da-China repleta de fotos e anúncios de época, o que o torna ainda mais apelativo. Contém 20 músicas, entre as canções populares, os fados, os “excêntricos” humorísticos ou as melodias saídas do teatro de revista. Foram registadas entre 1905 e 1916, recuperadas e digitalizadas no âmbito de um trabalho prévio à obra desenvolvido no Instituto de Etnomusicologia. A selecção pretende “dar o espectro de tudo o que era gravado no período”. Ouvimos, então, Maria Pires Marinho cantar em 1907 o então novíssimo, agora clássico, Fado do 31. Ouvimos as “Lavadeiras de Coimbra”, o “Fado da Severa” e o “Fado corrido”. E vemos a realidade da época preservada no calor do momento: Vivas à República e a Afonso Costa na reconstituição do 5 Outubro de 1910 gravada um ano depois; o mesmo Afonso Costa, em 1916, alvo de uma das canções da revista Coração à Larga; a I Grande Guerra no Cigarro do Soldado que Ilda Stichini canta no mesmo ano (“o cigarro é um amigo / que na paz e no perigo / dá conforto e prazer”). Esta é uma parte, a mais visível, e óbvia, da peculiaridade portuguesa de que fala Leonor Losa. Desvendar as restantes foi o grande desafio da investigação.

Calma com o progresso
Leonor e Susana Belchior, que com ela trabalhou no levantamento das fontes, depararam-se logo a início com um paradoxo: “Víamos muitos anúncios comerciais nos jornais, víamos que havia grandes espólios de discos no início do século XX e no boletim da Propriedade Industrial, estavam registadas muitas marcas de grafia portuguesa, mas depois não havia nenhum discurso sobre os discos. A recepção em Portugal foi silenciosa. No início”, conta, “esse foi o grande quebra-cabeças”: “Havendo tantos discos, tantas lojas, tantas marcas, onde está a opinião das pessoas?” A resposta chegou por dedução. E estava na estratificação social. A publicidade podia defender que o gramofone e os discos neles tocados eram chiques, mas essa opinião não parecia ser consensual.

No início do século XX já se fazia crítica discográfica em Inglaterra ou nos Estados Unidos, em Portugal, porém, o disco era visto como “uma tecnologia curiosa sem um estatuto cultural equiparável a outras práticas, como as idas ao teatro ou os serões em casa com o piano”.

No livro, Leonor Losa colocou em epígrafe um excerto de A Cidade e as Serras, de Eça Queiroz, a obra em que o Jacinto deslumbrado com o progresso em Paris se transforma no céptico rodeado do verde minhoto em Tormes, precisamente para ilustrar essa relação dúbia com o progresso mantida pelas elites portuguesas. “É muito engraçada aquela visão portuguesa da modernidade: ’Sim senhor ao progresso, mas vamos com calma porque é um bocado bimbo, é um bocado parola a modernidade’. Não era vista necessariamente como sinónimo de avanço social”, aponta.

Quem ouvia os discos era uma média burguesia que, ainda que já dispusesse de rendimentos suficientes para aceder aos equipamentos, demasiado caros para o grosso da população, não era produtora de discurso. Esse lugar, nas revistas e nos jornais, estava reservada para “os detentores da alta cultura”. E essa elite não parecia muito interessada nos discos. “Distinção social era vestir o casaco de peles e ir à ópera”, resume Leonor Losa.

Certo, apesar disso, é que os discos tinham muita circulação e um alcance vasto. Mas onde estavam os gramofones? Inicialmente, Leonor não os viu nas fotografias de quotidiano pesquisadas. Avançando até ao final dos anos 1920, ei-los por fim, em anúncios de cafés que publicitam o seu gramofone, ou em crónicas sobre os feirantes que os usavam para chamar a atenção dos clientes. Ou numa uma expressão tornada popular como "aquela mulher parece um gramofone", aplicada a senhoras de voz demasiado estridente. O gramofone podia ser desconsiderado pelas elites, mas era inegável a sua popularidade. E comerciantes entusiastas mobilizaram-se. À portuguesa. Ou seja, num muito eficiente desenrascanço – eis outra peculiaridade nacional nesta história global.

Não são as vedetas, é o repertório
No fervor que se seguiu à implantação da República, com tumultuosas batalhas políticas a desenrolar-se nas ruas e no parlamento, desenvolviam-se também pequenas revoluções no quotidiano. Leonor Losa: “Foi para mim uma revelação aperceber-me que foram os lojistas do pequeno comércio, a trabalhar em condições muito precárias, que arranjaram estratégias para salvaguardar o mercado português. Eram pequenas figuras que estavam a tentar o seu modo de sustento mas eram também figuras políticas, porque avançaram com posturas alternativas a essa visão monolítica que temos do período, a de que tudo era caótico e desorganizado e em que era impossível ter um projecto, porque seria permanentemente boicotado. Havia projectos familiares sólidos de aproximação à modernidade. Uma aproximação alternativa, que não era a mesma de outros países. Era a possível em Lisboa e no Porto”.

Olhando o período a um século de distância, pousando os olhos nas belíssimas imagens incluídas em Machinas Fallantes enquanto ouvimos a música do CD nele incluído, lemos e percebemos como aquilo que temos por garantido é construção mais recente que julgávamos. Descobrimos, por exemplo, que as primeiras estrelas do disco não eram as vedetas. O estrelato pertencia por inteiro ao repertório. Se a passagem do cinema do mudo para o sonoro matou a carreira dos actores cuja voz e não se adequava ao novo formato, no caso da música gravada os constrangimentos técnicos limitavam o acesso de muitos às sessões de gravação. No CD encontramos um exemplo eloquente.

Ouvimos a famosa fadista Maria Vitória, que daria nome a um teatro no Parque Mayer, cantar Fado Maria Victoria e pasmamos com o alcance mínimo e timbre desconfortável da cantora. “Para serem ouvidas na gravação, as vozes tinham que ter uma projecção um pouco atípica”, explica Leonor Losa – digamos que a estridência era rainha. “Não era qualquer voz, por muito boa que fosse, por muito reconhecido que fosse o intérprete, que podia gravar de forma eficaz”.

Antes da implantação definitiva da música gravada, no final da década de 1920, altura em que esta ascendeu do estatuto menor que lhe era até então atribuído pelas elites, os discos eram povoados de nomes desconhecidos do público ou por actores, como o supracitado Duarte Silva, que, dada a sua versatilidade, se adaptavam com mestria a diversos registos.

Investigação encerrada, terminado o livro, sentimos que um vazio se preencheu. Sabemos muito mais e o que sabemos permite-nos ver, ouvir e perceber a relação de Portugal com essa tecnologia assombrosa surgida no final do século XIX. Sabemos mais, mas sobram muitos espaços em branco por preencher. Leonor Losa fala-nos das pessoas que mais a fascinaram no decorrer da investigação, os lojistas José Castello Branco, Artur Barbedo [do Porto, um dos primeiros importadores de material fonográfico no país] e o multifacetado Carlos Carlderon. “São-me muito queridos na medida em que sinto que me aproximei um pouco de vidas que têm uma profundidade a que não consegui aceder. E esse lado de me ter aproximado sem conseguir chegar-lhes verdadeiramente continua a deixar-me muito curiosa. Quem eram realmente estas pessoas?”

Se alguma vez o chegarmos a saber, é pouco provável que seja através de Leonor Losa. O lado obsessivo de investigadora diz-lhe que, se continuar a esgravatar, conseguirá chegar mais longe. Durante a investigação, enquanto contactava todos os Calderon que a lista telefónica de Lisboa lhe devolveu, descobriu-se a falar com o nonagenário neto de Carlos, que lhe revelou que o avô fazia gravações na cave da sua loja de discos, novidade preciosa –“não fazíamos ideia que já se faziam gravações em Portugal no tempo dele”.

Livro editado, teve Arnaldo Trindade a contactá-la para lhe dizer que Artur Barbedo era amigo do seu pai, que conhecia a família e que esta teria certamente informações que poderia partilhar. Essas, porém, são portas que ficam abertas a quem quiser aprofundar o tema. Leonor quer seguir em frente e passar do início do século XX para este início do seguinte. Não pelas diferenças inevitáveis entre uma época e outra. Precisamente o contrário.

“A minha vontade neste momento é pensar o momento presente. Principalmente, tendo em conta que a investigação [de Machinas Fallantes] me surpreendeu. Esperava encontrar uma história estagnada, chata, desencantada, e encontrei tudo ao contrário. Percebi que a vida era muito dinâmica e que aqueles pequenos agentes tiveram capacidade para fazer muito. E acho que é isso que vemos também hoje em dia. Sinto nestas pequenas dinâmicas de artistas que criam o seu próprio produto e evitam intermediários um contrapeso à ordem neoliberal que vivemos. Isso está a despertar-me a atenção. Aquilo que me foi revelado no início do século XX, está a acontecer agora”.

O círculo completa-se. A história continua