Primeiro suspiro de alívio em 53 horas custou mais quatro mortos à França

Sequestro numa mercearia em Paris termina com quatro reféns mortos. Suspeitos do ataque contra o Charlie Hebdo também foram mortos numa operação policial.

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Depois de uma fuga que durou quase 48 horas, os irmãos Chérif e Saïd Kouachi, suspeitos de terem assassinado 12 pessoas no ataque contra o jornal satírico, barricaram-se numa empresa gráfica em Dammartin-en-Goêle, cerca de 30 quilómetros a noroeste da capital francesa.

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Depois de uma fuga que durou quase 48 horas, os irmãos Chérif e Saïd Kouachi, suspeitos de terem assassinado 12 pessoas no ataque contra o jornal satírico, barricaram-se numa empresa gráfica em Dammartin-en-Goêle, cerca de 30 quilómetros a noroeste da capital francesa.

Armados com metralhadoras Kalashnikov e com um refém em seu poder, os dois homens foram cercados pela polícia durante sete horas, mas o impasse terminou com uma operação que durou poucos minutos: pouco depois das 16h (15h em Portugal continental), uma intensa troca de tiros e pelo menos cinco explosões deixaram a França respirar de alívio pela primeira vez desde quarta-feira.

Chérif e Said Kouachi foram mortos e o único refém que tinham em seu poder – o proprietário da empresa, identificado como Michel Catalano – escapou ileso. Um outro funcionário conseguiu esconder-se numa outra área do edifício e foi ajudando a polícia com informações transmitidas por telefone.

Antes disso, assim que chegaram à empresa onde acabariam por se barricar, os dois irmãos passaram por um técnico comercial, que os confundiu com dois polícias. "Cruzei-me com um dos terroristas, apertei-lhe a mão e disse-lhe bom dia", contou o homem ao jornal Le Figaro. "Monsieur, vá-se embora, nós não matamos civis", terá respondido um dos dois homens, suspeitos de terem matado na quarta-feira cinco cartoonistas, dois redactores e um revisor de textos do Charlie Hebdo, para além do fundador do Festival de Cadernos de Viagem de Clermont-Ferrand, um funcionário de uma empresa de administração de edifícios e dois agentes da polícia francesa.

Operações simultâneas
Quase em simultâneo, na zona oriental de Paris, dezenas de polícias da unidade antiterrorista recebiam ordens para tomar de assalto uma mercearia kosher, onde Amady Coulibaly, o homem suspeito de ter matado uma agente da polícia na quinta-feira, manteve várias pessoas reféns durante cerca de quatro horas. O atacante foi morto, mas o desfecho desta operação acabou por ser mais trágico: quatro reféns mortos e pelo menos quatro polícias feridos.

Para além destas informações, que foram sendo avançadas por agências noticiosas ao longo do dia e que acabaram por ser confirmadas ao fim da tarde pelo Presidente francês, François Hollande, e pelo primeiro-ministro, Manuel Valls, poucos pormenores se conhecem das duas operações policiais.

Pouco depois do assalto das forças francesas contra a gráfica em Dammartin-en-Goêle começaram a circular informações de que tinham sido os irmãos Chérif e Saïd Kouachi a abrir fogo contra os agentes, mas o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, apresentou mais tarde uma versão diferente: a polícia lançou o ataque, com tiros e granadas atordoantes, e os suspeitos do massacre no jornal Charlie Hebdo saíram do edifício e investiram contra os agentes, numa tentativa de fuga sem sucesso.

Quase à mesma hora, com uma diferença de dois ou três minutos, chegava também ao fim o sequestro numa mercearia kosher na Porta de Vincennes, na zona oriental de Paris, um ataque que o Presidente francês classificou como "um terrível acto anti-semita". Também neste caso há ainda pormenores por esclarecer, mas a estação francesa BFMTV diz que falou com o atacante, Amady Coulibaly, que terá afirmado estar "coordenado" com os irmãos Chérif e Saïd Kouachi: "Eles, o Charlie Hebdo; eu, os polícias", citou a estação a francesa.

Na mesma conversa telefónica, segundo a BFMTV, o atacante disse que tinha feito 16 reféns e que matara quatro deles. No final da operação, a agência Associated Press avançou que a polícia conseguiu libertar 15 reféns. Uma das dúvidas que permanecia ao fim do dia era se Amady Coulibaly actuou sozinho ou se havia um segundo sequestrador. Outra incógnita era o destino de Hayat Boumedienne, a sua companheira.

Também os suspeitos do ataque ao Charlie Hebdo falaram com a estação BFMTV durante as horas em que estiveram barricados na empresa gráfica em Dammartin-en-Goêle, a poucos quilómetros do Aeroporto Charles de Gaulle. Nessa conversa, Chérif Kouachi terá dito que a sua viagem ao Iémen em 2011 foi financiada por Anwar al-Awlaki, islamista iemenita nascido nos Estados Unidos e um dos líderes da Al-Qaeda na Península Arábica que foi morto num ataque com um drone em Setembro desse ano.

Não é claro se existia de facto uma ligação entre Amady Coulibaly e os irmãos Chérif e Saïd Kouachi, mas ao longo do dia foi também avançado que o sequestrador de Paris ameaçou matar reféns, se a polícia não deixasse sair em liberdade os dois atacantes.

Ouvido pela BBC, o especialista em negociações com sequestradores James Alvarez admitiu essa possibilidade, mas disse não acreditar que as exigências tivessem algum fundamento.

"Penso que os atacantes não tinham uma esperança realista de serem libertados. Era apenas algo para ganhar tempo e para captar a atenção da polícia. O terceiro atacante obrigou as forças de segurança a dispersar os seus recursos para Paris, com o objectivo de dispersar as atenções", disse James Alvarez.

O jornalista Alfred de Montesquieu, antigo correspondente de guerra da agência Associated Press e actual grande repórter na revista Paris Match, disse que se notou "uma forte ligação entre eles".

"A polícia sabia que eles estavam a falar entre eles – o atacante da mercearia pode ter agido em resposta a uma mensagem dos outros, quando começaram a ser atacados", disse Alfred de Montesquieu.

Ao fim de 53 horas de cortar a respiração em França, entre o ataque contra a redacção do jornal Charlie Hebdo e as operações da polícia na região de Paris, líderes políticos e comunitários começam a olhar para o futuro, em especial para as relações com a comunidade muçulmana.

“O nosso 11 de Setembro”
O escritor franco-argelino Karim Amellal, conferencista na universidade SciencesPo, alertou para a necessidade de os franceses "não caírem na armadilha dos terroristas, que é a de tentar dividir", e fez uma comparação que mostra bem a onda de choque que atravessou o país com o ataque contra o Charlie Hebdo: "É o nosso 11 de Setembro."

"Houve um pico de islamofobia, como houve depois do 11 de Setembro nos Estados Unidos. A islamofobia é muito forte na sociedade francesa e está a crescer, o que me preocupa muito", disse Karim Amellal à BBC. Para travar o aumento das tensões, o escritor pede que os acontecimentos dos últimos dias sejam entendidos por todos "não só como um crime contra o Estado francês e a liberdade de expressão, mas também contra o islão".

"A comunidade muçulmana está dividida – uma parte acha que não deve pedir desculpas, porque fazemos parte da nação francesa. Somos cidadãos franceses e queremos ser tratados como tal. Estamos chocados, mas estamos chocados enquanto cidadãos franceses", disse Karim Amellal.

O Presidente francês, François Hollande, condenou os ataques dos últimos dias, classificando o sequestro na mercearia kosher como "um terrível acto anti-semita", mas quis deixar clara a diferença entre religião e terrorismo: "Os que cometeram estes actos terroristas, esses fanáticos, não têm nada a ver com o islão." O primeiro-ministro, Manuel Valls, pronunciou-se no mesmo sentido: "Começámos uma guerra contra o terrorismo, não uma guerra contra a religião, e não contra o islão."