Cálculos políticos estilhaçaram o consenso tentado após ataque ao Charlie Hebdo

Marine Le Pen diz que foi excluída da marcha de domingo, na qual vão estar presentes vários líderes europeus. Socialistas dizem que não faz sentido convidar quem promove a divisão e o preconceito.

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Hollande pediu aos franceses para “se unirem domingo na defesa dos valores da democracia e do pluralismo” Philippe Wojazer/Reuters

Bastaram 48 horas para que os cálculos políticos estilhaçassem o sentimento de união que o ataque ao jornal Charlie Hebdo gerou em França. O rastilho incendiou-se quando o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, convidou a UMP (direita), do ex-Presidente Nicolas Sarkozy, a juntar-se à “marcha republicana” convocada para domingo em homenagem às vítimas, deixando de fora a Frente Nacional. A exclusão permitiu a Marine Le Pen dizer-se vítima do “sectarismo” da classe dirigente francesa, assegurando que “não vai aonde não é desejada”.

François Hollande ainda tentou silenciar a polémica nascida na véspera. O Presidente francês lembrou que foram os partidos e os sindicatos a organizar a manifestação em Paris – que tem já a presença confirmada de mais de uma dezena de líderes europeus, incluindo as do primeiro-ministro britânico, David Cameron, e da chanceler alemã, Angela Merkel –, mas sublinhou ninguém se deve sentir excluído. “Todos os cidadãos podem participar, não há controlo” de simpatias políticas, explicou, pouco depois de se ter reunido com a líder da FN, um dos últimos partidos a ser recebido no Eliseu.

Mas Le Pen tratou de insistir na ideia de exclusão. “Não consegui obter do Presidente da República um levantamento claro da proibição para que o nosso movimento – os seus eleitos e representantes, que milhões de franceses esperavam ver nos cortejos – participe em condições dignas e respeitosas”, afirmou a eurodeputada à saída do Eliseu. A dirigente revelou que Hollande lhe garantiu que a sua segurança não seria posta em risco se fosse à marcha, mas acrescentou: “Não vou tentar participar numa manifestação na qual os seus principais organizadores não querem ver-nos”.

O Partido Socialista “enterrou-se sozinho na armadilha”, reagiu um dirigente ouvido pelo jornal Libération, dizendo não compreender como a formação “deu a Le Pen o gostinho de fazer o papel de excluída de uma manifestação na qual nunca teve intenção de participar”. Uma avaliação idêntica à de outros dirigentes que deram a cara para acusar o primeiro-ministro de ter permitido a politização da manifestação ao anunciar publicamente o convite à UMP, dando visibilidade ao facto de só a FN não ter sido chamada a participar. “Na melhor das hipóteses foi amadorismo político, na pior irresponsabilidade”, afirmou o deputado socialista Pouria Amirshahi, citado pelo Le Monde.

Um erro de cálculo que assumiu maiores proporções face à divisão que surgiu nas fileiras socialistas sobre o assunto, em contraste com a UMP, que criticou em bloco a exclusão do partido de extrema-direita. “As palavras têm um sentido e unidade nacional quer dizer todos os franceses sem excepção, senão deixa de ser unidade nacional”, disse um porta-voz do partido da direita.

Os partidos mais à esquerda fizeram saber que a participação da extrema-direita seria inaceitável e depressa a liderança socialista fechou as portas a qualquer cedência. “Esta marcha é uma reacção em defesa de valores e entre eles está a tolerância, a luta contra o racismo, o anti-semitismo, contra os actos antimuçulmanos, uma certa ideia de República. Não é uma manifestação a favor da pena de morte”, afirmou o primeiro-ministro – numa das primeiras reacções ao ataque, Le Pen tinha reafirmado que, se for eleita Presidente em 2017, irá realizar um referendo sobre a reintrodução da pena de morte.

Para os socialistas, escreve o Le Monde, aceitar que Le Pen surgisse na cabeça da marcha ou que as bandeiras da FN se erguessem entre a multidão “equivaleria a normalizar em definitivo o partido”, tornando impossível repudiar no futuro uma aliança (nunca admitida, mas várias vezes falada) entre a UMP e a extrema-direita. Alguns analistas afirmam que a marcha poderia servir de “baptismo republicano” a um partido que continua a não ser aceite pelo sistema, mesmo depois de ter ganho as eleições europeias de 2014. Mas outros entendem que Marine nunca quis ser vista do mesmo lado da barricada dos partidos a quem culpa pela actual situação do país.

Le Pen parece dar razão aos últimos. À saída do Eliseu, lamentou ser a única a afirmar que França enfrenta uma “guerra” contra o fundamentalismo islâmico. “A primeira coisa que devemos fazer quando vamos travar uma guerra é sermos capazes de saber contra quem nos batemos. Nós batemo-nos contra uma ideologia, a do fundamentalismo islâmico. Não o dizer é já uma prova de fraqueza”, afirmou, horas antes de Hollande ter ido à televisão repetir o apelo para que se evitem generalizações. Os três atacantes “nada têm a ver com a religião muçulmana”, afirmou num novo discurso à nação que terminou pedindo aos franceses para “se unirem, domingo, na defesa dos valores da democracia e do pluralismo”. Um apelo a que a classe política está já a fazer orelhas moucas.

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