João Garcia Miguel sonhou um sonho acordado

Era um daqueles textos que “tinha guardado no baú para um dia fazer”, e chegou o dia. La Vida es Sueño, de Calderón de la Barca, é a fantasia bilingue que João Garcia Miguel considera adequada a este país encerrado numa torre a um canto da Europa, e que hoje acorda para a vida no palco do Teatro Nacional São João.

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TYRONE ORMSBY

Sonhou com isso, João Garcia Miguel, desde o Maio longínquo circa 2010 em que um amigo espanhol viu o que fez com o Peter Handke de O Filho da Europa, e se lembrou do Calderón de la Barca que “tinha guardado no baú para um dia fazer”, juntamente com o livro que um dia há-de ler e com o filme que um dia há-de ver. “O Calderón de la Barca faz parte de uma matriz europeia de teatro que eu acho importante fazer, como acho importante fazer todos os clássicos, mesmo que seja para os desfazer. Era um autor na minha lista, mas muito em abstracto; estava até mais inclinado para O Príncipe Constante, por causa da questão do Infante D. Fernando. Mas este A Vida é Sonho, escrito ainda por cima numa Espanha que então também incluía Portugal, parece-me um sonho muito ibérico acerca de um território encurralado numa ponta da Europa que actualmente já nem sabe de que língua é. É um desafio pegar nesta história do teatro que se tornou já literatura e ir lá reconhecer temas que têm muito a ver com a genealogia do meu teatro, como a questão da liberdade interior e da relação com o mundo e com os outros, que me apaixonam”, diz ao Ípsilon no final do primeiro ensaio no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, onde a peça se estreia hoje.

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Sonhou com isso, João Garcia Miguel, desde o Maio longínquo circa 2010 em que um amigo espanhol viu o que fez com o Peter Handke de O Filho da Europa, e se lembrou do Calderón de la Barca que “tinha guardado no baú para um dia fazer”, juntamente com o livro que um dia há-de ler e com o filme que um dia há-de ver. “O Calderón de la Barca faz parte de uma matriz europeia de teatro que eu acho importante fazer, como acho importante fazer todos os clássicos, mesmo que seja para os desfazer. Era um autor na minha lista, mas muito em abstracto; estava até mais inclinado para O Príncipe Constante, por causa da questão do Infante D. Fernando. Mas este A Vida é Sonho, escrito ainda por cima numa Espanha que então também incluía Portugal, parece-me um sonho muito ibérico acerca de um território encurralado numa ponta da Europa que actualmente já nem sabe de que língua é. É um desafio pegar nesta história do teatro que se tornou já literatura e ir lá reconhecer temas que têm muito a ver com a genealogia do meu teatro, como a questão da liberdade interior e da relação com o mundo e com os outros, que me apaixonam”, diz ao Ípsilon no final do primeiro ensaio no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, onde a peça se estreia hoje.

Uma torre de holofotes, uma barreira de microfones, uma guitarra e uma voz ao fundo (os Lavoisier: Patrícia Relvas & Ricardo Afonso) – nada mais sobrou do aparato cénico depois de, lido e digerido o clássico, João Garcia Miguel ter transformado o salão para comer e para dançar de Calderón de la Barca neste descampado em que quatro actores (além de Miguel Borges, há Sara Ribeiro, Diana Sá e Emílio Gomes) e quatro performers, os Yuuts Ruoy (Ana Ri, Gonçalo Valves, Inês Carincur e Rita Barbita), são a carne para canhão de que se alimenta a violência vulcânica de Segismundo: “Só isto não tem fim, o sonhar e o viver (…). O viver é sonhar (…). Todo o homem que vive sonha o que é enquanto não desperta.”

Entre Basílio, o pai protector e paranóico, e Segismundo, a fera que um dia foi amansada, o encenador criou um tampão, Sara Ribeiro, o narrador bilingue que impede a matança febril aparentemente necessária (“Afinal tudo é sonho. Yeah, yeah, yeah, great comedy everybody”) e transforma o texto da peça num mutante metade português, metade inglês (falemos todas as línguas da Europa, e de preferência ao mesmo tempo, como neste título, La Vida es Sueño, memória já distante dos ensaios em que se leu muito um castelhano que praticamente não se ouve em cena). Um hipertexto bilingue que ecoa também a poesia de Edgar Allan Poe, Gertrude Stein e Herberto Helder, dividida irmãmente com a equipa artística e a equipa técnica expandida que faz esta peça, “os cúmplices de bandidagem” de que João Garcia Miguel gosta de rodear-se, misturando indistintamente os seus “monstros muito queridos”, como Sara Ribeiro e Miguel Borges, rookies como Gil Dionísio, actores da companhia coprodutora, o Teatro Oficina, de Guimarães, e os miúdos recém-formados saídos dos estágios de formação avançada da JGM. “Fazer esta peça com estas pessoas neste teatro nacional dá a este gesto um impacto simbólico, nos sentidos político e artístico do termo, que me parece muito importante.”

Entre o texto de partida e o objecto inclassificável de chegada, intrometeram-se ainda o Cristianismo, a psicanálise e este interminável Inverno europeu. “A ideia de que a realidade é sempre uma matéria em fuga entre o que vivemos e o que vamos idealizando é um material incrível de que a religião cristã se apoderou e que depois a psicanálise quase matou, mas que me parece vital para construir um continente. É estranho: o sonho é tão fácil, tão simples, mas parece que para o recuperarmos temos de marchar com esse exército de filósofos, médicos, teólogos, psicanalistas, médicos e cientistas que nos obrigam a permanecer acordados.”

Aqui, o despertador toca para que possamos adormecer – e soñar in every língua.