Retrato do artista enquanto urso

Uma interpretação extraordinária de Timothy Spall transporta um filme inteligente sobre as contradições entre o artista e a sua arte.

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É, de caminho, a melhor definição para o que o grande Timothy Spall faz na pele do pintor britânico do século XIX J. M. W. Turner: dá-lhe qualquer coisa de animal não inteiramente domesticado, um urso que procurasse encaixar-se na sociedade civilizada do melhor modo possível, mas incapaz de esconder a sua natureza selvagem, comunicando por grunhidos e rosnados, mesmo quando articula frases rebuscadas e elaboradas como se esperaria da Inglaterra vitoriana. Turner é uma figura de urso de cujas patas saem quadros de uma beleza delicadamente poderosa, explorações impressionistas de cor, luz e textura que compõem uma imagem. É esse o segredo da arte: como transmutar o banal em transcendente, como colocar emoção numa sucessão de traços e pinceladas. 

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É, de caminho, a melhor definição para o que o grande Timothy Spall faz na pele do pintor britânico do século XIX J. M. W. Turner: dá-lhe qualquer coisa de animal não inteiramente domesticado, um urso que procurasse encaixar-se na sociedade civilizada do melhor modo possível, mas incapaz de esconder a sua natureza selvagem, comunicando por grunhidos e rosnados, mesmo quando articula frases rebuscadas e elaboradas como se esperaria da Inglaterra vitoriana. Turner é uma figura de urso de cujas patas saem quadros de uma beleza delicadamente poderosa, explorações impressionistas de cor, luz e textura que compõem uma imagem. É esse o segredo da arte: como transmutar o banal em transcendente, como colocar emoção numa sucessão de traços e pinceladas. 

Mike Leigh, o resmungão cineasta inglês que tem passado toda a carreira a transmutar os metais aparentemente pobres da vida quotidiana no ouro precioso de uma série de retratos de gente normal que tem tudo de excepcional, pode muito bem estar a falar de si quando está a contar a história dos últimos anos de vida e obra de Turner. Mr. Turner gira todo à volta da aparente contradição entre a transcendência gloriosa da arte e a banalidade e fragilidade do artista, do divórcio entre aspiração e realidade, inspiração e transpiração. Não há melhor exemplo para isso do que a espantosa cena em que o que parece ser uma “provocação” ao colega e rival Constable se revela ser uma pequena inspiração que dá uma dimensão adicional a um quadro que pareceria acabado – momento que também diz como inspiração e transpiração, petulância e talento são indissociáveis. 

É por aí que percebemos como Mr. Turner encaixa na filmografia mais tradicionalmente “socio-realista” de Leigh, mais atenta à Inglaterra contemporânea e que só no magistral Topsy-Turvy (1999) se arriscara pelos caminhos do filme de época: tal como a pintura de Turner, também o seu cinema se constrói numa metódica abordagem de preparação e trabalho de casa que permite, depois, que tudo floresça frente à câmara. E, por muito que não pareça ser um dos filmes maiores de Leigh – é um tudo nada mais pesadão e flácido do que o seu habitual - , a riqueza de pormenores, a inteligência da abordagem e o rigor da reconstituição tornam Mr. Turner num dos melhores filmes que se podem ver agora por aí. Com o bónus da interpretação absolutamente extraordinária de Timothy Spall, cúmplice de longa data de Leigh que parece habitar a complexidade e as contradições de Turner como se não fossem nada de mais. É uma figura de urso que merece ser vista e aplaudida.