Volta à História de Portugal com Fernando Rosas

O século XX português, entre o Regicídio (1908) e o 25 de Abril de 1974, visto a partir da Rua do Arsenal, é o tema do episódio inaugural da série televisiva História a História, que este domingo começa a ser exibido na RTP Internacional. O autor é Fernando Rosas, que nesta sua volta a Portugal diz sentir-se bem mais confortável do que quando correu o país em campanhas políticas e eleitorais.

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“Em cada episódio vamos contar uma história a partir de um lugar, de uma actividade, de uma personagem ou de um conjunto delas”, explica Fernando Rosas na apresentação que faz ao PÚBLICO, no meio de mais um dia de filmagens, em Ílhavo, desta sua experiência nova no formato documental televisivo.

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“Em cada episódio vamos contar uma história a partir de um lugar, de uma actividade, de uma personagem ou de um conjunto delas”, explica Fernando Rosas na apresentação que faz ao PÚBLICO, no meio de mais um dia de filmagens, em Ílhavo, desta sua experiência nova no formato documental televisivo.

O primeiro episódio tem por título Rua do Arsenal, uma História Política do Século XX. Com base nesta rua da Baixa de Lisboa nascida da reconstrução pombalina, Fernando Rosas conta a história do século XX português, desde o Regicídio de 1908 até ao 25 de Abril de 1974, passando pela implantação da República, pelas revoltas, revoluções e episódios mais ou menos sangrentos das primeiras décadas do século, e também pela consolidação do Estado Novo e pelos discursos de Salazar na Sala do Risco do Arsenal. “É impressionante como uma simples rua foi palco de tantos acontecimentos, e tão marcantes, da nossa história contemporânea”, realça.

História a História resulta de um convite da RTP, a que o historiador “não podia dizer que não”. Elencou 13 temas, 13 histórias da História de Portugal, com a “preocupação de a aproximar do grande público”.

A meio da última semana, Fernando Rosas e a sua pequena equipa de sete pessoas – dirigida pelo jovem produtor (GardenFilms) e realizador Bruno Morais Cabral – percorriam numa autocaravana as margens da Ria de Aveiro a registar imagens e testemunhos sobre a pesca do bacalhau. O PÚBLICO acompanhou o segundo de dois dias de rodagem das imagens actuais que farão o nono episódio da série, Faina Maior, a pesca do bacalhau. Primeiro, no interior do arrastão “Santo André” (construído na Holanda, em 1948), que no antigo Forte da Barra (agora Jardim Oudinot) perpetua a memória dessa faina mítica como uma extensão do Museu Marítimo de Ílhavo; depois, já dentro do museu, frente ao aquário de bacalhaus – “um dos peixes mais estúpidos que há, por isso fácil de pescar”, comentava –, Fernando Rosas evoca, explica e desmonta o processo e o imaginário associado a esta faina que ocupa um lugar à parte na história do país. “Deixando de parte a questão de saber quem é que chegou primeiro à Terra Nova, a verdade é que Portugal estava lá já no século XVI, com os seus barcos de pesca”, diz o apresentador percorrendo o velho barco, agora “envernizado” a azul-e-branco para objecto de museu.

Na véspera, o cenário para esta viagem às memórias da faina tinha sido o belíssimo lugre “Santa Manuela”, no interior do museu de Ílhavo. “Havia uma mística ideológica criada pelo Estado Novo em volta da pesca do bacalhau, que incluía, por exemplo, um Bispo do Mar que benzia os barcos à partida para a Terra Nova” – explica-nos o historiador –, “e que era apresentada como a continuação da gesta dos Descobrimentos”. As razões que tornaram o “projecto do bacalhau" totalmente anacrónico ainda durante o governo de Salazar, e as mudanças que a liberalização das pescas, nos anos 60, e depois o 25 de Abril trouxeram ao sector são também elucidados pelo cicerone de História a História – que para este episódio teve como consultor Álvaro Garrido, director do Museu Marítimo de Ílhavo e um grande especialista do tema.
 
Filmar com drones
Além de entrevistas e testemunhos, cada episódio da série é feito com filmes de arquivo, fotografias e outros documentos, além das imagens filmadas agora nos cenários relacionados com cada tema – com recurso, inclusive, a drones, como se poderá verificar nas vistas aéreas da Rua do Arsenal, no primeiro episódio. “Mesmo se falamos de História, o nosso desafio é produzir um conteúdo contemporâneo, dinâmico, que capte a atenção dos espectadores”, diz Bruno Morais Cabral. O documentarista formado na Escola de Teatro e Cinema de Lisboa e autor de Praxis (melhor curta-metragem do DocLisboa de 2011) assume, no entanto, que a presença de Fernando Rosas é o principal trunfo do programa.

É, de facto, notório o à-vontade com que o político e ex-deputado do Bloco de Esquerda enfrenta a câmara. O desafio maior, nas filmagens na Ria de Aveiro, era mesmo manter-se penteado perante o vento forte que soprava nessa manhã de sol. Recorrendo às tradicionais fichas de professor, que a anotadora Raquel Bagulho lhe ia passando sempre que necessário, Fernando Rosas assume a câmara de televisão como uma extensão da sua profissão. “Sou professor, gosto de comunicar”, diz. Essa facilidade faz lembrar a presença televisiva de um José Hermano Saraiva. Uma associação que Fernando Rosas aceita, de resto. “O Hermano Saraiva era um magnífico comunicador, um homem com uma telegenia invulgar”, diz, assumindo que visionou vários dos seus programas, e outros do género, para “aprender, e para perceber como é que se tem feito História na televisão”.

Já do ponto de vista dos conteúdos, realça a diferença que o distancia da visão daquele que foi ministro do Estado Novo. “Não há nenhum historiador que não tenha um ponto de vista sobre o seu objecto de estudo, e eu assumo o meu”, nota, acrescentando que isso está também expresso nos temas e nos personagens que escolheu tratar, num trabalho que contou com a colaboração da investigadora sua doutoranda (e ex-jornalista do PÚBLICO) Maria José Oliveira.

Entre os temas de História a História estão os judeus, os árabes (o capítulo a rodar na próxima semana, em Mértola) e os escravos. Neste último, por exemplo, o historiador faz questão de explicar que não se trata tanto de falar do tráfico, mas de como uma cidade como Lisboa, nos séculos XVI-XVII, tinha 10% de população de escravos. “Não havia ninguém, com algum status social, que não tivesse escravos. Eles integraram-se silenciosa e visivelmente na sociedade portuguesa, tanto no mundo urbano como no rural, e tiveram um peso que é pouco falado e conhecido”.

E haverá episódios sobre os naufrágios, a máquina a vapor, a Pneumónica de 1918, ou “o Porto insurgente”, este numa visita também guiada pelo arquitecto Alexandre Alves Costa ao modo como a arquitectura do centro histórico da cidade manifesta a irrupção do poder da burguesia.

“Não fizemos nenhum episódio biográfico propriamente dito”, assinala o autor da série. Isto não significa que algumas figuras não ganhem um destaque especial, e em mais do que um episódio. É o caso do Marques de Pombal. “Nesta série, por vários caminhos, vamos parar muito ao Marquês do Pombal, que é uma personagem não suficientemente estudada”. E lembra o seu papel no fim da discriminação entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos, ou da perseguição aos judeus, ou ainda na tentativa de garantir um aproveitamento produtivo do ouro do Brasil. “O Marquês de Pombal é um homem cuja obra, nos mais variados e insuspeitados domínios, foi importantíssima como prefácio da modernidade em Portugal”, diz.

Haverá também um episódio sobre os rostos da condição feminina com referência às primeiras feministas no país, como Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Ângelo ou Maria Veleda… Não esquecendo “a Maria Lamas, que abre caminho a um discurso feminista muito específico a partir da sua obra extraordinária”, e ainda as mulheres do MUD Juvenil, chegando inclusivamente a Catarina Eufémia.

“Poderiam ser outros os temas, mas achei que estes eram suficientemente abrangentes para ir um pouco além do registo anedótico muito particular”, justifica o historiador.

Significa isso que poderá vir a haver uma segunda série de História a História? Rosas diz que é cedo para responder, que é preciso ver como corre esta primeira. Além de que tem a sua actividade de professor na Universidade Nova de Lisboa, onde actualmente só dá aulas no segundo semestre. “Foi isso que me permitiu avançar para este desafio”. Para esta volta a Portugal que “é muito cansativa, mas muito estimulante”. Bem diferente daquelas que Fernando Rosas realizou enquanto político, nomeadamente como candidato à Presidência da República em 2001.

“Sinto-me manifestamente melhor neste papel. Não estou a tentar convencer ninguém a votar em mim [risos]; estou a comunicar às pessoas uma certa visão da História de Portugal, sem nenhuma pretensão de que elas concordem comigo”.