Falar do presente, trocando imagens

O espaço social está mais fragmentado. Nele surgem novos tipos de tensões. A segunda edição do European Photo Exhibition Award na Gulbenkian de Paris propõe um olhar sobre os movimentos do novo social. Conseguirá a fotografia dar-lhes imagem?

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E, por vezes, a distância física que nos separa das imagens fotográficas consegue ser tão fatalmente real que nos garante uma posição à margem, uma posição a uma distância segura que nos dá a ilusão de imunidade, como se houvesse o perigo sermos feridos pelo que elas mostram. Provocar reflexões críticas sobre a contemporaneidade é talvez um dos maiores desafios do suporte e da linguagem fotográfica de hoje, um tempo em que a produção fotográfica de vocação puramente documental ou fotojornalística se vê diminuída na sua mais poderosa função: atestar o real.

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E, por vezes, a distância física que nos separa das imagens fotográficas consegue ser tão fatalmente real que nos garante uma posição à margem, uma posição a uma distância segura que nos dá a ilusão de imunidade, como se houvesse o perigo sermos feridos pelo que elas mostram. Provocar reflexões críticas sobre a contemporaneidade é talvez um dos maiores desafios do suporte e da linguagem fotográfica de hoje, um tempo em que a produção fotográfica de vocação puramente documental ou fotojornalística se vê diminuída na sua mais poderosa função: atestar o real.

A segunda edição do European Photo Exhibition Award (EPEA), iniciativa de quatro fundações europeias - Fondazione Banca del Monte di Lucca (Itália), Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal), Fritt Ord Foundation (Noruega) e Körber-Stiftung (Alemanha) - incita-nos a olhar para um passado muito recente, para aquilo que hoje nos rodeia no contexto geográfico europeu. A exposição Horizons que foi inaugurada na última semana na delegação da Gulbenkian em Paris, reúne os olhares de doze fotógrafos à volta de fenómenos, transformações, tensões, sintomas e acontecimentos das sociedades europeias, dentro daquilo que a sociologia convencionou chamar de novo social. Foi a partir deste termo - que deu forma às teorias sobre os novos movimentos sociais que surgiram nos países ocidentais em meados dos anos 60 – que os artistas foram convidados a apresentar projectos originais que mostrassem mutações em termos de identidade cultural, modos de vida, meios de comunicação de território ou política.

Com o barulho de martelos e berbequins como pano de fundo durante os últimos preparativos da montagem da exposição (até 20 de Dezembro), Sérgio Mah, curador convidado pela Gulbenkian, ressalva que esta não pretende ser “uma exposição de tese”, mas antes uma tentativa de tomar o pulso “ao que tem estado a acontecer” na Europa, dar imagem a “sintomas reais”, desde as novas formas de sociabilidade e construção de células familiares até aos novos tipos de imigração ou diferentes maneiras de lidar com a memória, o corpo e as imagens. “Mas os artistas não são sociólogos. Estes fotógrafos foram trabalhando em realidades que lhes chamaram a atenção no mundo contemporâneo. Há trabalhos que questionam fenómenos do novo social, mas há outros que pertencem ao velho social, embora aqui sejam mostrados com roupagens contemporâneas”, explica o curador que escolheu trazer para o EPEA os projectos de Patrícia Almeida (Portugal, 1970) e André Cepeda (Portugal, 1976) e do francês Eric Giraudet de Baudemange (França, 1983). Para Mah, é importante “pensar a Europa” à luz deste desafio temático, tendo em conta que “um dos sintomas da pós-modernidade é o processo de fragmentação dos movimentos sociais”. Um tempo de economia pós-industrial, onde surgiu uma plêiade complexa de formações feministas, vegetarianas, pacifistas, étnicas, gays, ambientalistas… Um tempo “que deu origem a uma sociedade que já não é um tronco coeso, mas antes uma aglutinação de diferentes sensibilidades ideológicas, filosóficas e políticas”. Um tempo no qual “a excentricidade deixou de ser uma coisa excêntrica.”

Mais arriscada do que excêntrica, a decisão de juntar no mesmo espaço doze abordagens fotográficas tão distintas (há ensaio, fotojornalismo, instalação, retrato) acaba por resultar num confronto desafiante entre as abordagens mais próximas da conceptualização artística e as práticas documentais que se alimentam da tradição da reportagem. A prova de que as fronteiras entre um e outro universo visual são, afinal, mais ténues do que tendemos a aceitar está na montagem desta exposição que coloca o fotojornalismo do italiano Massimo Berruti (manifestações em Istambul em 2013 por causa de alterações ao parque Gezi) em frente à instalação de Patrícia Almeida, que propõe justamente uma reflexão sobre a maneira cada vez mais uniforme e saturante como são utilizadas as imagens fotográficas nos jornais. Este frente-a-frente pode ser lido como a tese e a síntese de um problema relacionado por um lado com a utilização acrítica de imagens (Patrícia Almeida) e, por outro, com a importância do fotojornalismo não apenas como documento histórico mas como motor capaz “de criar história” (Massimo Berruti).

Esconder imagens
No muro alto que Patrícia Almeida cobriu de páginas de jornais não há imagens. Ou melhor havia, mas foram escondidas por baixo de tinta preta. Durante uma residência artística na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, foi começando a juntar folhas de jornais e a orientá-las para um espaço, formando jogos de palavras através dos títulos. Na construção desse mural ficcionado a partir da realidade quotidiana, Patrícia Almeida apercebeu-se do carácter “excessivo” e “repetitivo” das imagens que inunda o grafismo da generalidade dos títulos de imprensa ocidental. Para o projecto do EPEA decidiu pintar todas as fotografias “à procura de algum apaziguamento visual”. Um gesto que não pretende diminuir a importância do fotojornalismo (“na verdade, era preciso que houvesse muito mais”), mas sim questionar torrente de imagens que todos os dias são vertidas para as páginas dos jornais. “Há muitos fotojornalistas que foram atirados para o desemprego recentemente. Houve uma limpeza enorme. A maior parte dos jornais já quase só recorre a bancos de imagens, o que faz com que haja mais uniformidade e que exista também repetição de muitas fotografias. Há uma espécie de imagens gerais que estamos sempre a ver. Muitas vezes só muda a legenda”, explicou a fotógrafa ainda com tinta preta nas mãos, pouco depois de preencher o último quadrado negro numa das páginas. A acompanhar este muro exclusivo de letras, em My Life Is Going to Change Patrícia Almeida propõe uma reencenação de algumas das imagens que se tornaram omnipresentes nos jornais que foi arquivando ao longo de 2011, como a fotografia que mostra António José Seguro vitorioso e de mão no ar depois de ter conquistado a liderança do PS, ou a que mostra Angela Merkel e Nicolas Sarkozy numa proximidade afectuosa. As impressões dessas imagens (que são acompanhadas por páginas de pequenos textos que jogam novamente com títulos, frases e ideias feitas repetidas nos jornais) estão disponíveis para quem quiser formar o seu jornal. Para Sérgio Mah, para além do questionamento da “vertigem imaginária” com que somos confrontados quotidianamente, esta instalação alerta para degradação do fotojornalismo “enquanto instituição privilegiada para aferição do real”. “Neste trabalho existe um paradoxo. Enquanto lida com um problema de embriaguez de imagem, também nos desperta para um problema grave que é o colapso da profissão de fotojornalista. Acho que ainda não estamos a avaliar este desaparecimento como deve ser. As mudanças são sócio-profissionais mas também são ideológicas.”

Embora mais lenta (mas nem por isso menos estrondosa), a série Fade, de André Cepeda, também aborda uma mudança. Ou melhor, uma mudança de uma zona central do Porto que parece ter ficado a meio do caminho - onde antes havia algum dinamismo comercial e industrial, agora surge o devaneio urbanístico, a precariedade socioeconómica e o declínio demográfico. Nestas imagens de Cepeda reina o desvanecimento, a ausência de qualquer laivo de identidade ou de centralidade que alguma vez possam ter existido. Na linha de trabalhos sobre a cidade onde vive (a periferia, o peso do passado, as traseiras…), André Cepeda não procura registos politicamente correctos ou passíveis de fornecer visões românticas de um lugar onde “impera a desqualificação e a desertificação urbanísticas, o abandono e a exclusão social”.

Quem também aparece num limbo e mergulhada em incertezas é a classe de jovens adultos da Letónia captada por Linda Bournane Engelberth (Noruega, 1977) em Things Come Apart. Depois da crise internacional que começou em 2008, o país estremeceu socialmente e viu sair milhares de pessoas à procura de emprego. Num dos trabalhos mais pungentes e perturbadores desta segunda edição do EPEA, Engelberth procurou um grupo social que vive no dilema permanente entre emigrar e ficar no país, onde as condições de vida se vão degradando com o aumento da pobreza e uma elevada taxa de desemprego. Como mostram as imagens de Things Come Apart, nessa espera por um futuro melhor há quem desespere. O imaginário é povoado pela desolação e pela melancolia, por condições de vida duras, mas também por paisagens naturais e por registos de quotidiano ou de intimidade, que simbolizam um apego à terra, uma resistência à partida.

Nessa tentativa de dar resposta fotográfica a um desafio teórico, que apesar de ser discutido há pelo menos quatro décadas tem balizas pouco estáveis, o trabalho que mais cirurgicamente apresenta uma realidade novo social talvez seja o de Arja Hyytiäinen (Finlândia, 1974). Em Family, são mostradas (num labor visual tipo álbum) quatro histórias de família (uma das quais a da própria fotógrafa). Assente na certeza das transformações por que passou a noção de família nas últimas décadas, a série de imagens de Hyytiäinen retrata o quotidiano, onde a única coisa distintiva é o género e a orientação sexual dos pais. Quem olha para os quatro grupos de imagens não encontra outros sinais que não sejam os da afectividade maternal e paternal e os momentos de afectividade em muitas variantes de suporte fotográfico. A intenção é clara e passa por mostrar que “as fotografias, na sua ambivalente temporalidade, propõem-se a dirigir a ideia de família para aquilo que em primeiro lugar a deve qualificar: a naturalidade de um lugar de afectos, de sentimentos recíprocos, independentemente do género e da orientação sexual dos pais.”

Através de recursos estilísticos muito variados, Horizons arrisca caminhos que vão para além das consequências da profunda crise económica e política em que a Europa está mergulhada. Em vez disso, este conjunto de trabalhos (que para além dos nomes citados inclui Jan Brykcynski, Simona Ghizzoni, Kirill Golovchenko, Espen Rasmussen, Stephanie Steinkopf e Paula Winkler) propõe releituras das normas e valores que, na sua multitude, dão forma ao panorama novo social. Usando o passado (inevitavelmente), aqui a fotografia mostra-se capaz de confrontar o presente. E ainda dá pistas sobre como pode ser o futuro.

O Ípsilon viajou a convite da delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris