Governo português enfrenta Alemanha e Comissão Europeia em defesa de acordo transatlântico

Bruno Maçães, secretário de Estado dos Assuntos Europeus, é um dos 14 signatários de uma carta que defende mecanismos de arbitragem jurídica fora dos tribunais europeus na futura parceria com os EUA. Jean-Claude Juncker opõe-se e já tem a sua primeira guerra.

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O tema parece menor: uma pequena cláusula a vigorar no futuro TTIP, a Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento, que visa eliminar barreiras e abrir os mercados europeu e norte-americano. O que tornou visível este conflito, numa negociação que se tem mantido, segundo as críticas, demasiado secreta, é um outro acrónimo – ISDS, que significa investor-state dispute settlement, ou seja, arbitragem Estado-investidor. Há quem queira um mecanismo destes na parceria, e há quem não queira.

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O tema parece menor: uma pequena cláusula a vigorar no futuro TTIP, a Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento, que visa eliminar barreiras e abrir os mercados europeu e norte-americano. O que tornou visível este conflito, numa negociação que se tem mantido, segundo as críticas, demasiado secreta, é um outro acrónimo – ISDS, que significa investor-state dispute settlement, ou seja, arbitragem Estado-investidor. Há quem queira um mecanismo destes na parceria, e há quem não queira.

O Governo português conta-se entre os primeiros. Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia indigitado, eleito com os votos dos eurodeputados do PSD e do CDS e ao lado de quem Passos Coelho fez campanha em Maio último, é dos que querem retirar essa cláusula do acordo.

E o que acrescenta a cláusula? Basicamente, um mecanismo que permite às empresas estrangeiras ultrapassar os tribunais dos Estados e recorrer a uma arbitragem externa. Segundo o Wall Street Journal, “os grupos ambientalistas e outros temem que os investidores recorram ao ISDS para impossibilitar aos governos que apertem a regulação sanitária e ambiental, com base no argumento de que essas regras põem em causa o seu investimento”.

Mas há outros receios. Na recente crise em Chipre, alguns dos bancos atingidos estão a processar o Estado através deste mecanismo, pedindo compensações por terem sido submetidos a mudanças na legislação.

Isso não impede o ministro cipriota da Energia, Indústria, Comércio e Turismo, Yiorgos Lakkotripis, de assinar uma carta, com outros 13 governantes europeus, entre os quais o português Bruno Maçães (secretário de Estado dos Assuntos Europeus) a exigir que a União Europeia inclua no acordo “mecanismos de protecção dos investidores”.

A carta, dirigida à comissária do Comércio indigitada, a sueca Cecilia Malmström, devia ser secreta, e tem a data de 21 de Outubro, terça-feira da semana passada. Mas o Financial Times acaba de a revelar… E Juncker não parece ter gostado. Desde logo, retirou à sueca, liberal, a responsabilidade pelo dossier TTIP, atribuindo uma palavra final ao seu número dois, o holandês, e social-democrata, Frans Timmermans.

O assunto é, para simplificar, uma clara divisão esquerda-direita. Liberais e conservadores defendem a arbitragem e o “comércio livre”; sociais-democratas, esquerda e verdes opõem-se. Juncker é, ele próprio, um conservador, mas são dele algumas das maiores críticas a esta cláusula.

“No acordo de parceria que, eventualmente, a minha Comissão venha a submeter a esta casa para aprovação, não haverá nada que limite as partes no acesso aos tribunais nacionais, ou que permita a tribunais secretos terem a última palavra nas disputas entre investidores e Estados”, prometeu o luxemburguês na sua audição no Parlamento Europeu, como sucessor indigitado de Durão Barroso.

No texto em que expôs as prioridades para o seu mandato, Juncker assinalou, de forma clara: “Não aceitarei que a jurisdição dos tribunais nos Estados-membros da UE seja limitada por regimes especiais para investidores.”

Berlim com Juncker
Os 14 governantes – da Inglaterra, República Checa, Chipre, Estónia, Dinamarca, Finlândia, Croácia, Malta, Lituânia, Irlanda, Suécia, Espanha, Portugal e Letónia – argumentam, na sua carta, que a cláusula é obrigatória, à luz do mandato dado pelo Conselho Europeu à Comissão. “Isso não pode ser alterado por considerações políticas num Estado-membro, especialmente quando esse Estado tem diversos acordos ISDS em prática”, afirmou Bruno Maçães ao Financial Times, numa clara referência à posição da Alemanha.

Em Berlim governa uma “grande coligação” entre conservadores e sociais-democratas, e estes últimos são opositores da cláusula. É, aliás, do SPD alemão que provém o chefe de gabinete de Juncker, Martin Selmayr, visto pela imprensa internacional como o responsável pela posição irredutível do novo presidente da Comissão.

Juncker, por seu lado, já veio desmentir os 14 governantes que escreveram à sua comissária: “O mandato para a negociação prevê certas condições que devem ser respeitadas por um regime desse tipo [ISDS], bem como uma avaliação das suas relações com os tribunais domésticos. Não há, por isso, nenhuma obrigação a este respeito: o mandato deixa a questão em aberto e serve de guia:”

Neste aspecto parece ter razão. O texto que mandata a Comissão diz que “a inclusão de protecção aos investidores e ISDS dependerá de uma solução satisfatória ser encontrada, ao encontro dos interesses da UE (…). O assunto será também considerado à luz do equilíbrio final do acordo.”

Contactado pelo PÚBLICO, Bruno Maçães respondeu, já depois do fecho da edição de papel, explicando as razões pelas quais Portugal defende a polémica cláusula: “Para Portugal a questão crucial é eliminar a nossa desvantagem competitiva na área do investimento. Só três Estados-membros da UE não têm qualquer acordo de protecção de investimento com os Estados Unidos. Portugal é um deles. É, por isso, uma questão de mercado interno e de criação de condições iguais para todos. Aguardamos os resultados do processo de consulta pública sobre investimento. Existe um mandato aprovado unanimemente que terá de ser respeitado.”