Brasil no divã: "O Brasil é corrupto do dedão do pé ao último fio de cabelo"

Dias antes da primeira volta das eleições presidenciais, pedimos a três escritores brasileiros que colocassem o Brasil no divã. Começamos com Antonio Prata, que considera que, no seu país, "falta coragem para fazer mudanças".

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"A grande questão do Brasil ainda é a desigualdade" Renato Parada

Você poderia escolher e descrever um episódio desta campanha eleitoral fazendo a analogia à psicanálise como um sintoma que descreve o conflito?
Eu não saberia abordar pelo lado do sintoma e do conflito, pelos termos psicanalíticos, porque não sou um psicanalista, sou um neurótico (risos), estou do outro lado do divã. Mas um episódio da campanha que foi muito gritante foi o do Levy Fidelix, o homem da homofobia. É um candidato que tem menos de um por cento das intenções de voto [teve 0,43% dos votos na primeira volta] de uma legenda de aluguel, de um partido nanico que não elege ninguém mas que vive um pouco do fundo partidário. O Governo paga um dinheiro por ano para todos os partidos, é uma quantia boa se você não faz mais nada da vida. Nas campanhas, estes partidos fazem coligações com partidos maiores e também recebem contribuições destes partidos; ou seja, é uma força que não representa nada na sociedade este Levy Fidelix, mas estes caras vão aos debates junto com os candidatos grandes. E, nos debates, eles têm a mesma oportunidade de falar que os caras que estão na frente. E perguntaram a ele algo sobre a união civil entre homossexuais e ele desandou a falar um discurso que eu achei que não era mais possível nos últimos 30 anos de avanços. Começou a falar que "esta minoria tem que saber o seu lugar, tem que ser colocada no seu lugar, nós, a maioria, temos que saber colocar estes caras no seu lugar". Que "aparelho excretor não é aparelho reprodutor", falou coisas horrorosas e as pessoas riram na plateia e os outros candidatos não se manifestaram. Acho que isso foi um sintoma, usando o termo psicanalítico, de como o Brasil é arcaico, como é uma sociedade injusta em que os direitos das minorias ainda estão muito longe de serem assegurados. Se este cara fizesse um discurso racista, faria um barulho muito maior, o racismo – embora ainda exista – já não é mais considerado tolerável em público. A homofobia ainda é muito tolerável em público. Quando, há meses, um goleiro [guarda-redes] foi chamado de "macaco" pela torcida do Grémio, foi um escândalo e o Grémio foi tirado do campeonato. Mas os torcedores continuam gritando "bicha, bicha, bicha" e não acontece nada. Voltando ao debate, é um balde de água fria. No Brasil, a maioria já coloca esta minoria em seu lugar, há muitos espancamentos de gays, assassinatos de gays, na região da Avenida Paulista. O Fidelix não está falando no terreno do abstracto. Está assinando em baixo de assassinatos e espancamentos.

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Você poderia escolher e descrever um episódio desta campanha eleitoral fazendo a analogia à psicanálise como um sintoma que descreve o conflito?
Eu não saberia abordar pelo lado do sintoma e do conflito, pelos termos psicanalíticos, porque não sou um psicanalista, sou um neurótico (risos), estou do outro lado do divã. Mas um episódio da campanha que foi muito gritante foi o do Levy Fidelix, o homem da homofobia. É um candidato que tem menos de um por cento das intenções de voto [teve 0,43% dos votos na primeira volta] de uma legenda de aluguel, de um partido nanico que não elege ninguém mas que vive um pouco do fundo partidário. O Governo paga um dinheiro por ano para todos os partidos, é uma quantia boa se você não faz mais nada da vida. Nas campanhas, estes partidos fazem coligações com partidos maiores e também recebem contribuições destes partidos; ou seja, é uma força que não representa nada na sociedade este Levy Fidelix, mas estes caras vão aos debates junto com os candidatos grandes. E, nos debates, eles têm a mesma oportunidade de falar que os caras que estão na frente. E perguntaram a ele algo sobre a união civil entre homossexuais e ele desandou a falar um discurso que eu achei que não era mais possível nos últimos 30 anos de avanços. Começou a falar que "esta minoria tem que saber o seu lugar, tem que ser colocada no seu lugar, nós, a maioria, temos que saber colocar estes caras no seu lugar". Que "aparelho excretor não é aparelho reprodutor", falou coisas horrorosas e as pessoas riram na plateia e os outros candidatos não se manifestaram. Acho que isso foi um sintoma, usando o termo psicanalítico, de como o Brasil é arcaico, como é uma sociedade injusta em que os direitos das minorias ainda estão muito longe de serem assegurados. Se este cara fizesse um discurso racista, faria um barulho muito maior, o racismo – embora ainda exista – já não é mais considerado tolerável em público. A homofobia ainda é muito tolerável em público. Quando, há meses, um goleiro [guarda-redes] foi chamado de "macaco" pela torcida do Grémio, foi um escândalo e o Grémio foi tirado do campeonato. Mas os torcedores continuam gritando "bicha, bicha, bicha" e não acontece nada. Voltando ao debate, é um balde de água fria. No Brasil, a maioria já coloca esta minoria em seu lugar, há muitos espancamentos de gays, assassinatos de gays, na região da Avenida Paulista. O Fidelix não está falando no terreno do abstracto. Está assinando em baixo de assassinatos e espancamentos.

Temas como aborto, homossexualidade, parecem ser tabus, a Marina teve que voltar atrás sobre o casamento gay; há quatro anos, foi a Dilma, na questão do aborto… É algo conflituoso na sociedade, hoje?
A grande questão do Brasil ainda é a desigualdade. É que os pobres não têm voz e não fazem barulho, tanto barulho. Por que ninguém reagiu a esta história do Fidelix ou à questão da Dilma? Os candidatos precisam do voto conservador, os evangélicos são muito fortes e ninguém tem muita coragem de falar o que pensa neste terreno. As pessoas mentem. A Dilma é claramente favorável ao aborto e, na eleição passada, fez um malabarismo para ficar em cima do muro. É triste ver os debates, porque você não tem o candidato que é a favor destas pautas e o conservador dizendo que é contra. Todo mundo cozinha um discurso, e, depois que ganha, é a mesma coisa. A Dilma certamente é favorável ao casamento gay e ao aborto, mas não consegue aprovar estas pautas, porque senão ela perde o apoio que tem.

São sempre estes os temas em que os candidatos voltam atrás…
A pauta vai sempre mais à direita, ao longo da campanha, os candidatos vão sempre ficando mais à direita, para conseguir estes votos. Nenhum destes candidatos é salvador da pátria nem uma tragédia. Se fosse o Levy Fidelix ou o Pastor Everaldo, eu estaria um pouco desesperado. Quando o Lula ganhou a primeira vez, tinha uma ideia de que ele ia mudar tudo. Mudou bastante, mas mudou o PT também, ficou tudo entrevado nestas coligações e estas coligações são idênticas no PT, PSDB ou Marina. Todo mundo que for governar é isso: não tocar no aborto, não tocar na legalização das drogas e aparelhar o Estado inteiro com cargos de indicação. Isto não é um privilégio do PT nem do PSDB. Esta é maneira que funciona a política no Brasil. A Marina veio com este papo da nova política e imediatamente fez as alianças, aliou-se ao Alckmin [governador de São Paulo], com quem ela disse que não se aliaria jamais duas semanas antes. Então este papo de governar com os bons é ridículo e também acho ridículo os outros candidatos acusarem a Marina de ser idealista, como se o facto de governar com o Renan Calheiros (presidente do Senado) e com o José Sarney (aliado do PT) fosse uma vantagem. Nós conseguimos as alianças mas não conseguimos fazer as coisas que precisam ser feitas porque temos estas alianças, não vamos conseguir fazer nada do que precisa ser feito porque não temos as alianças, afinal ninguém consegue fazer as coisas que precisam ser feitas. Mesmo assim, o Brasil avançou muito nos últimos 20 anos nos governos do Fernando Henrique, do Lula e da Dilma, mas falta muito.

Isso faz lembrar um pouco a frase do psicoterapeuta alemão "é mais fácil ficar com um problema do que buscar a solução". Será que o Brasil consegue sair deste círculo vicioso?
Precisava não ter medo da mudança, precisava que as pessoas assumissem suas posturas. Fazer rupturas. No final, o que a Marina propõe é muito parecido com o que aconteceu com o Lula: "Eu vou governar com a extrema-esquerda e com a extrema-direita". É um pouco este ajuste que o PT fez ao aliar-se a todos os lados, e fica neste muro aí.  

E dá para pensar em sair deste conflito?
Não sei a solução, não… Não é um conflito, o problema é que não há conflito, precisava de mais conflito. Precisava ter coragem para fazer mudanças.

Mas quem vota em quem está lá é a sociedade…
Não acho que os políticos brasileiros sejam diferentes dos brasileiros. Os políticos brasileiros são legítimos representantes da sociedade brasileira. O problema não são os políticos. Você vai tirar a carta de condução ou você vai chamar um canalizador, a corrupção está instalada em tudo. Eu tive a minha carta cassada por excesso de multas e fui a cinco despachantes para tentar que levassem meus documentos para tirar uma nova carta no Detran (Departamento de Trânsito), faz uns quatro anos. Todos queriam que eu subornasse, que eu pagasse mil reais "de taxa" ao Detran, e eu dizia que não queria pagar, eles diziam que só faziam se tivesse o esquema. Tudo é assim, da reunião de condomínio a... Não é que nós votamos errado. O Brasil inteiro é assim: fisiologismo, nepotismo, umas pessoas que indicam as outras que são parentes… Todo mundo é "do jeitinho", todo mundo é da corrupção. Sou muito pessimista em relação a isto. O Brasil é corrupto do dedão do pé ao último fio de cabelo. O político é só alguém que tem mais acesso à roubalheira ou tem como roubar mais, está no pote de mel. Eu vou muito ao Rio de Janeiro em trabalho e apanho táxi do aeroporto Santos Dumont para o hotel, aí eu peço uma nota [factura] para o taxista e ele me pergunta: qual valor? Significa que se o táxi for 30 reais eu posso colocar 55 reais, você embolsa 25. Se você entrar nessa, você pode até falar "então faz aí 80 e eu te dou 10 a mais". Outro dia, um motorista foi me levar de uma empresa até em casa e deu 90 reais e ele disse: "Vou pôr 120, tá bom?" Não, não tá bom… Mas não são os pobres, não. Um cara me chama para uma reunião numa grande editora. Para começo de conversa, o trabalho que ele me propõe não é daquela editora, é um projecto dele com uma outra editora. Já começa corrupto aí, está usando o espaço da editora para fazer um trabalho dele. Ele perguntou quanto eu cobrava por cinco roteiros de animação. Quando eu mandei o orçamento, ele disse que ia acrescentar 15 mil reais para mandar para a editora, porque era a comissão dele. E eu perguntei se a editora sabia. A resposta foi: "Não, isso é algo entre nós, porque eu estou cobrando uma taxa" de sei lá o quê, deu um nome técnico para a corrupção… O que aquele cara, que fez faculdade, editor de uma revista de uma grande editora, estava me propondo era "tungar" 15 mil reais da outra editora porque achou que eu ia topar isto. Não são os petistas, não são os "tucanos" (PSDB), não é o Maluf, é todo mundo.

Então não há solução?
Também não sou um apocalíptico que acha que o Brasil é uma merda (neste aspecto da corrupção, é). Mas eu conheço muita gente que pega a factura no valor correcto, é um país que produziu Machado de Assis, que acaba de ganhar uma medalha Fields de Matemática. Eu escrevi uma crónica quando perdemos de 7 a 1 para Alemanha, quando se falou que a gente é incapaz de montar uma selecção… Isto não é o Brasil, isso é uma parte do Brasil, isso é a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), é o taxista, o cara da editora, mas isso não é todo o Brasil. O Brasil tem o Impa, que é o Instituto de Matemática Aplicada do Rio, tem o Grupo Corpo (dança), tem a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo, tem o Carnaval, tem a bossa nova, o Instituto Butatã, que faz vacina e investigação de ponta para o mundo inteiro. Não é que tudo é uma droga…. Isso é um discurso muito simplista e reducionista, da direita, este papo de que a gente tem que apagar tudo e mandar o país inteiro fazer um MBA em Chicago e fazer o Brasil virar uma franchising da Gessy-Lever… Não. O Zé Miguel Wisnik tem um conceito que eu acho muito bacana. O veneno-remédio. No Brasil, as coisas boas e as coisas ruins são todas muito misturadas. Elas brotam do mesmo lugar. A mistura entre o público e o privado faz com que sejamos profundamente afectivos e que sejamos corruptos. Quem sabe, drenando o lado mau?… Qual é o jeito, não tenho a mínima ideia.

Já que nos propusemos colocar o Brasil no divã, vamos falar da contra-transferência em psicanálise… O que, de si próprio, está aí em tudo o que está analisando?
Tem tudo. Eu faço parte deste povo. Os preconceitos estão todos em mim também. Eu sou de uma geração que já escutou que racismo e homofobia eram errados. Mas não vivi exactamente isso. Nunca tive um colega negro em toda a minha vida escolar, dos dois aos 17 anos, em classes de 30 a 40 alunos que mudavam quase todo o ano. A gente está falando de quatro escolas de 300 pessoas em que não havia nenhum negro, nenhum. Em escolas em que eu estudei, de 1000 alunos, havia um ou dois negros na escola inteira. É óbvio que, se você cresce num ambiente destes, você cresce com preconceitos. Gay, até à minha adolescência, não era uma coisa que você falasse assim, naturalmente. Era muito natural você falar "sua bicha, seu veado"… Eu vivo na parte privada do Brasil, do seguro saúde, da escola particular, eu faço parte destes três por cento do Brasil, então tento fazer a minha parte, escrever sobre estas coisas. Não só tento, mas consigo não aceitar as notas corruptas, e luto muito contra o nepotismo de dar cargos, indicar coisas de amigos que você não gosta. Decidi que não ia mais escrever apresentação ou frase de livro de amigos, porque tenho muitos que escrevem e não gosto de tudo o que todos escrevem. Não posso escrever a orelha de um livro que eu não gosto de um amigo falando que é bom. É igualzinho a empregar a sogra na Secretaria de Desenvolvimento Agrário. Isso também é corrupção.