Nem o amor por Bénard da Costa consegue dar fôlego à competição portuguesa

Num concurso português aventureiro mas pouco estimulante, o DocLisboa visita as memórias de João Bénard da Costa e os internados do hospital Conde Ferreira.

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É verdade que, sem grande possibilidade de escoamento fora dos circuitos restritos dos festivais, de exibições televisivas para cumprir contrato ou de estreias pontuais e confidenciais em sala, há sempre a sensação de estar a “pregar aos convertidos”.

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É verdade que, sem grande possibilidade de escoamento fora dos circuitos restritos dos festivais, de exibições televisivas para cumprir contrato ou de estreias pontuais e confidenciais em sala, há sempre a sensação de estar a “pregar aos convertidos”.

Mas, em anos anteriores, ainda houve “filmes-OVNI” que exploravam novas maneiras de pensar o documentário (E Agora? Lembra-me de Joaquim Pinto, ou A Última Vez que Vi Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata); ou testemunhos atentos da realidade social (A Nossa Forma de Vida de Pedro Marques ou Vida Activa de Susana Nobre). Este ano, a colheita é francamente menos rica, e de todas as propostas a mais interessante continua a ser (com as reservas que já apontámos) As Cidades e as Trocas de Luísa Homem e Pedro Pinho, estreado há poucos meses no FIDMarseille (ainda pode ser visto terça-feira às 22h00 no City Campo Pequeno).

Mesmo assim, a segunda metade da competição é claramente mais aventureira, como prova Pára-me de Repente o Pensamento (São Jorge, quinta 23 às 18h45, e City Campo Pequeno, sexta 24 às 16h45), terceira longa de Jorge Pelicano, cujo Pare Escute Olhe gerou controvérsia quando venceu o concurso nacional em 2009. Pelicano propõe-nos olhar sem condescendência nem compaixão para o quotidiano dos internados no hospital psiquiátrico portuense Conde Ferreira. Fá-lo, ao mesmo tempo, de dentro - porque dá o tempo necessário para descobrirmos a humanidade desta gente que é demasiado depressa catalogada como “diferente” - e de fora - porque acompanha o actor Miguel Borges durante uma residência de três semanas no hospital. Mas o realizador nunca consegue conciliar com sucesso esses dois olhares: a atenção “à altura de homem” sobre os internados é irremediavelmente desequilibrada pelo “corpo estranho” de Borges, e o filme abusa de “tiques” visuais para agarrar o espectador, como se a força do tema e a frontalidade com que Pelicano olha para os doentes não fossem suficientes. E são.

Uma palavra para Volta à Terra, de João Pedro Plácido (São Jorge, quarta-feira às 18h30, e City Campo Pequeno, sábado 25às 16h), primeira obra simpática mas algo derivativa com a ajuda da cineasta luso-francesa Laurence Ferreira Barbosa. O retrato descontraído da comunidade agrícola nortenha de Uz (e o que ele diz sobre o país em que ainda vivemos) é francamente interessante; o registo de “ficção do real”, contudo, remete em excesso para o Querido Mês de Agosto de Miguel Gomes, o que, sem ser fatal, é decepcionante.

Sobra o mais comovente e o mais frustrante filme do concurso português. Crítico, actor, director da Cinemateca Portuguesa, simultaneamente farol e pára-raios da cinefilia portuguesa, João Bénard da Costa é homenageado pelo mui estimado Manuel Mozos em Outros Amarão as Coisas que Eu Amei (São Jorge, quinta 23 às 22h, e Ideal, sexta 24 às 19h45). Que, mais que um documentário, é uma espécie de auto-retrato fantasmagórico, extensão e evocação da personalidade do homem em atento e intenso mimetismo. Recorrendo a uma narração em off construída a partir de uma colagem de excertos das suas crónicas, ilustrada por imagens e fotos de arquivo e cenas e fotos dos filmes que tão veementemente defendeu, este não é um filme “sobre” Bénard da Costa tanto quanto é um filme “para” Bénard da Costa ou, no limite, “de” Bénard da Costa. Quem vier aqui à procura de uma biografia tradicional pode tirar o cavalinho da chuva; quem vier à espera de uma explicação do seu papel fulcral para a construção de uma crítica de cinema também; mas não há como negar a sinceridade e o amor com que este filme foi feito.