Putin está a vencer mas pode estar a cometer um erro histórico

Por que razão começar assim um comentário sobre a Ucrânia? Porque a “cascata de crises” a que assistimos este ano atinge com violência o sistema internacional e põe em causa aquilo a que chamamos a “ordem mundial do pós-Guerra Fria”. Uma ordem que, segundo muitos analistas, já está em coma. A intervenção russa na Ucrânia é a mais recente prova. A era das “ordens mundiais” desenhadas sobre conceitos ocidentais está a terminar – é a tese do livro que Henry Kissinger publicará na próxima semana (World Order). Falar da Rússia, da Ucrânia e da Europa exige que tenhamos presente aquela “cascata”. É errado abordar estes conflitos isoladamente porque se influenciam uns aos outros.

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Por que razão começar assim um comentário sobre a Ucrânia? Porque a “cascata de crises” a que assistimos este ano atinge com violência o sistema internacional e põe em causa aquilo a que chamamos a “ordem mundial do pós-Guerra Fria”. Uma ordem que, segundo muitos analistas, já está em coma. A intervenção russa na Ucrânia é a mais recente prova. A era das “ordens mundiais” desenhadas sobre conceitos ocidentais está a terminar – é a tese do livro que Henry Kissinger publicará na próxima semana (World Order). Falar da Rússia, da Ucrânia e da Europa exige que tenhamos presente aquela “cascata”. É errado abordar estes conflitos isoladamente porque se influenciam uns aos outros.

“A cascata de crises internacionais tem múltiplas implicações sobre os Estados Unidos e o mundo”, diz o analista Thomas Carothers, do think tank Carnegie. “Primeiro, a potência americana está constantemente a ser testada por actores emergentes que procuram determinar a capacidade e a vontade dos EUA para manter a ordem. Segundo, a ideia de pivot para a Ásia teve certa atracção” mas está a ser posta em causa pelo regresso americano ao turbilhão do Médio Oriente. E, no Médio Oriente, segue-se com atenção a atitude americana na Ucrânia.

2. Não se trata apenas de um conflito entre russos e ucranianos. É também uma prova de força entre Rússia e Europa e, ainda, um teste à NATO e aos EUA. Proclamou-se, algo enfaticamente em Cardiff: “É a crise mais grave na Europa desde o fim da II Guerra Mundial.”

Ao anexar militarmente a Crimeia, Vladimir Putin violou o princípio da integridade territorial dos Estados europeus consagrado na acta final da Conferência de Helsínquia, em 1975. Rompeu as parcerias com a Europa e a NATO e prepara-se para denunciar alguns acordos com os EUA. Argumenta Putin que todos estes acordos foram negociados quando Moscovo estava numa posição de fraqueza. A sua política, anunciada em Munique em 2007, visa anular a “ordem pós-Guerra Fria”.

Putin sabe que a força militar russa não tem comparação com a dos Estados Unidos. A invocação do seu arsenal nuclear é uma gesticulação guerreira de propaganda. Mas dispõe de vantagens consideráveis: tem um “interesse vital” na Ucrânia e muito mais a perder do que os ocidentais; em segundo lugar, as suas tropas estão “perto” e as da NATO “longe”. Por fim, a Rússia tem um chefe que pode tomar decisões imediatas, o que lhe dá uma vantagem táctica perante os 28 da UE. Na Ucrânia, Moscovo parece sempre um passo à frente dos ocidentais, tem tido a iniciativa. Putin não quer anexar a Ucrânia. Quer uma Ucrânia fraca, dividida e corrupta — logo dependente. Sem Kiev, o seu projecto da União Euro-Asiática não tem sentido.

O Kremlin tem outro desígnio, mais largo. “Os dirigentes russos prosseguem uma velha ideia que remonta aos tempos soviéticos: uma nova arquitectura de segurança na “grande Europa”, escreve o analista francês Daniel Vernet. “Sob esta forma diplomática esconde-se a vontade de ser parte integrante das decisões ocidentais em matéria de segurança, da defesa e da organização do Continente, incluindo a definição das esferas de influência.” 

O problema é que, apesar da extensão geográfica, da capacidade militar e da utilização da arma do gás, a Rússia não tem os meios necessários para tal ambição. É um país em catastrófico declínio demográfico, com uma economia dependente do gás e petróleo e que entrou em estagnação. Precisa de investimentos e tecnologias ocidentais. Resiste às actuais sanções porque elas produzem efeito a médio prazo.

Enfim: a Rússia não tem aliados permanentes. Prefere súbditos. É uma miragem contar com a China. Joga na divisão da UE e aposta na dificuldade de uma política energética comum europeia.

3. O governo ucraniano e os rebeldes “pró-russos” (leia-se russos) assinaram uma trégua que congelará a situação no terreno. No entanto, cada momento de “desescalada” ou cada trégua não devem ser tomados como a aproximação do fim do conflito. São uma pausa enquanto os actores, internos e externos, continuam a mover as suas pedras. Moscovo não abdicará dos seus objectivos. As tréguas são quase inevitavelmente feitas nas condições impostas por Moscovo. “A triste realidade é que Vladimir Putin está a vencer na Ucrânia”, escrevia ontem o The Economist.

A cimeira de Cardiff foi ambivalente. Os que esperavam uma atitude radical sobre a Ucrânia lamentam a “fraqueza europeia”. Os que se preocupam mais com a credibilidade da NATO aplaudem o “salto em frente” que consiste na criação da força de intervenção rápida para os países da Aliança vizinhos da Rússia. A NATO dá garantias de segurança aos seus membros da Europa Central e do Báltico, “reinventando a sua razão de ser”. À Ucrânia apenas promete ajuda e pressão sobre Moscovo. Kiev optou por assinar o cessar-fogo. “Encorajar Kiev a procurar uma vitória militar só poderia conduzir a uma inevitável derrota”, escreve no New York Times o britânico Anatol Lieven.

Até agora, a crise ucraniana tem sido marcada por factos consumados impostos pela Rússia e por erros de cálculo de todas as partes: da Europa, de Moscovo e de Kiev. Estes erros de cálculo são o aspecto mais perigoso da situação, arriscando-se a provocar novos desastres. Outro factor inquietante é Putin ter jogado todo o seu prestígio, e o da Rússia, numa “vitória” na Ucrânia. Está refém do nacionalismo russo.

4. O conflito, tudo o indica, vai ser longo. Com a anexação da Crimeia e a “invasão clandestina” do Donbass, “a Rússia perdeu a Ucrânia”. A situação política actual é completamente diferente da de Fevereiro. Por outro lado — e volto ao início — a Ucrânia faz parte da “cascata de crises” que se influenciam entre si, numa prova de força que a excede.

Há muitos cenários, alguns até inimagináveis. Se não houver um acordo sobre a soberania e a neutralidade da Ucrânia e Moscovo impuser o seu modelo de federalização, a unidade da Ucrânia pode estar condenada a prazo. A Rússia não quer separar o Donbass da Ucrânia mas utilizá-lo para controlar Kiev. Mas também “o resto dos ucranianos” pode um dia decidir separar-do Donbass, o que abriria caminho à sua ancoragem na Europa. A acontecer, Putin teria cometido o maior erro estratégico da Rússia pós-comunista.