Uma máquina chamada Franz Ferdinand e o desarmante Mac DeMarco

Os Franz Ferdinand deram um concerto em modo best-of e inflamaram a multidão (literalmente). Mac DeMarco não deu um concerto, promoveu um encontro e acabámos todos juntos com ele, com as suas canções, com a sua saudável loucura. 26 mil espectadores num segundo dia de Paredes de Coura em que também se destacaram Thurston Moore ou Thee Oh Sees.

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É apenas mais um dia de festival, o segundo de Paredes de Coura, quinta-feira. Uma banda escocesa com muito traquejo faz com que levante o pó no círculo de mosh. De tempos a tempos, chamas vermelhas irrompem entre a multidão. Tochada no concerto de Franz Ferdinand, o mais celebrado de quinta-feira? Tudo normal. “É o inferno de Coura”, poderia ter exclamado um adepto benfiquista mais entusiasmado com o que via e ouvia. Tudo normal? Não, não foi apenas mais um dia de festival.

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É apenas mais um dia de festival, o segundo de Paredes de Coura, quinta-feira. Uma banda escocesa com muito traquejo faz com que levante o pó no círculo de mosh. De tempos a tempos, chamas vermelhas irrompem entre a multidão. Tochada no concerto de Franz Ferdinand, o mais celebrado de quinta-feira? Tudo normal. “É o inferno de Coura”, poderia ter exclamado um adepto benfiquista mais entusiasmado com o que via e ouvia. Tudo normal? Não, não foi apenas mais um dia de festival.

Com 26 mil espectadores presentes na zona da Praia Fluvial do Taboão, no dia em que o Vodafone Paredes de Coura começou a funcionar em pleno com os dois palcos abertos à música, o festival minhoto foi, utilizando uma terminologia técnica, “um fartote”. Os Franz Ferdinand trouxeram os êxitos todos e uma força vital intocada (rock’n’roll anfetaminado e melodia pop vestida para matar). Mac DeMarco assinou um concerto para guardar na memória: foi terno, desafinado, trôpego, sincero e sem artifícios. Foi o cantor dono de um humor nonsense que mitifica pela desmistificação – e o público juvenil, muito juvenil, que este ano compõe grande parte da assistência há-de guardar este concerto na memória e no coração.

Neste Paredes de Coura que parece encaminhar-se para uma das maiores afluências da sua história, fomos açoitados pela vertigem eléctrica dos Thee Oh Sees, a banda de John Dwyer que maltrata toda a história do rock’n’roll com uma intensidade e com uma urgência que só pode ser amor. Concerto assombroso no palco Vodafone FM: a guitarra de mil riffs e mil sons, a secção rítmica a acelerar o ritmo quando cresce a intensidade eléctrica, John Dwyer a interromper I come from the mountain quando de uma invasão de palco, recriminando o segurança que não percebe o rock’n’roll e que quase esganara o pobre homem que subira a palco para partilhar toda aquela energia, a banda recomeçar onde parara. Um concerto dos Thee Oh Sees são os MC5 e Sun Ra unidos num filme de sci-fi série B, são o rock’n’roll como desejamos que seja: um magma eléctrico cuspido sem cessar – ninguém sai ileso, ninguém faz, actualmente, o que esta banda faz.

Neste dia, quinta-feira, esteve também em palco ao início da noite uma lenda a mostrar as canções do álbum a solo que sairá em Outubro, Best Day : Thurston Moore acompanhado por um trio onde se destacava outro Sonic Youth, o baterista Steve Shelley, mostrando no palco secundário uma linguagem aprimorada ao longo de décadas mas interpretado com o gozo e a intenção de quem está a descobri-la pela primeira vez (pelo que se ouviu, aguardamos com expectativa o que aí virá).

 

O aventureiro que toca blues 


Aqui, em Paredes de Coura, um homem de 74 anos andou pela tarde a tocar blues numa serração e a elogiar raparigas. Esse homem deu depois um concerto improvisado no campismo (onde terá destacado a beleza das raparigas), e levou em seguida o seu blues eléctrico, acompanhado de baterista, ao palco principal do festival. Seasick Steve, boné na cabeça, jardineira vestida, trouxe guitarra slide, voz enrouquecida pelo tempo e pelos excessos da vida, ajoelhou-se na boca do palco para extrair mais som da sua guitarra cambada e haveria de acolher uma jovem rapariga em palco para lhe dedicar a romântica Walking blues. I’m a self sufficient man, cantava pouco antes em ritmo Chicago blues. E sim, Seasick Steve é auto-suficiente: uma garrafa de vinho, uma guitarra, o blues e raparigas bonitas ao alcance da vista. Não precisa de nada mais – e o público aprecia muito este aventureiro que iniciou carreira quase sexagenário.

O dia começou às 18h, com o blues endiabrado vindo do Barreiro de Fast Eddie Nelson (homem com vistas largas, que incluiu no alinhamento uma versão muito rockada de Come together, dos Beatles). O dia acolheu o synth-pop para iate e daiquiri dos Panama, ao início da tarde no palco principal, e, noite alta, synth-pop igualmente, este do trio escocês CHVRCHES, sintonizado nos anos 1980 de Depeche Mode ou Orchestral Manoveurs in the Dark: a vocalista Lauren Mayberry é o centro de toda a música, expurgando dores do coração em cadência pop algo genérica – o público acompanhou sem grandes manifestações, aguardando o momento que se seguiria.

O que seguiria seriam uns Franz Ferdinand com mais de dez anos de vida e quase uma dezena de passagens por festivais portugueses. Não vivem o fulgor de outrora, quando foram erguidos a banda charneira de uma renovação do espírito rock no centro da cultura de massas. Mas se não vivem o fulgor de outrora, tal só sucederá porque não temos a hipótese de ver, dia após dia, um concerto da banda.

Entraram a matar com No you girls, The dark of the matinée, Right thoughts, right words, right action e Tell her tonight. Os corpos frente ao palco são ondulação constante, há mosh e há corpos surfando a multidão, levanta-se o pó, Alex Kapranos canta sorrindo, feliz com a reacção que a música, batida funk apunkalhada, mas de groove impoluto, provoca. Não há espaço para grandes conversas, além dos “Obrigado, obrigado” da praxe. Aqueles que viram a banda nascer e se renderam a Darts of pleasure ("Ich eisse superfantastisch” como declaração de intenções), a Take me out, Michael ou Fire (aquela com que despediram do concerto, apropriadamente incendiários), canções do álbum de estreia, unem-se às gerações mais novas que os descobriram mais tarde. Todos juntos, celebram esta máquina de precisão com sentido de palco e de dinâmica de concerto inatacáveis. Reduz-se a rotação com a Kinksiana Walk away, cola-se a mais recente Stand on the horizon à clássica Auf achse e o rock ganha sintetizadores e crescendo de DJ set.

Vêem-se os Ferdinand, nos seus fatos de designer muito pop, juntarem-se à volta da bateria para o número habitual de festim percutivo. Não houve descanso: para a banda, para o público (e lá vai tochada), para os seguranças que não pararam de amparar aqueles que deslizavam do surf sobre a multidão para o fosso fronteiro ao palco. Um grande concerto, e o mais celebrado da noite. Já tínhamos saudades e nem sabíamos. O regresso dos Franz Ferdinand a Portugal e a Paredes  de Coura marcará certamente esta edição do festival. Destacou-se num dia recheado de destaques. No dia de Mac DeMarco.

Quarta-feira, estivera a tocar no Lounge, em Lisboa, integrado nos Walter TV que partilha com dois companheiros de banda. Ontem, meteu-se num comboio com direcção a norte. À tarde, andou a conviver com o público e os fãs no parque fluvial. À noite subiu a palco com o boné dos Viceroy, os cigarros a que dedicou uma canção, Ode to Viceroy, com uma t-shirt do Elton John tardio, nada cool, vestida, e foi desarmante. Arranca com Salad Days, canção homónima do celebrado segundo álbum e acolhemos aquela pop sonhadora de guitarras cristalinas e melodias ternas. Tudo está longe de perfeito: o novo guitarrista, homem da Florida, bigode e cabelo comprido hippie, desafina aqui e ali, ouvem-se um par de pregos em locais pouco desejados, mas a música sobrevive incólume: há uma transparência na presença em palco, uma ausência de ego e pretensiosismo que conquista e cativa. Ouvem-se Blue boy, Ode to Viceroy ou Let my baby stay. Até que, inesperadamente tudo muda.

 

O concerto acontecimento 

Mac DeMarco pede a companhia de alguém conhecedor e devoto de Bob Marley – e eis que Filipa salta da plateia para o palco. Não é bem Jammin’ que ouvimos, é a versão sketch de humor nonsense da canção. “Ponham o dedo no ar se respeitam Jah”, exclama – e há um mar de dedos erguidos em Paredes de Coura. A partir daqui, o concerto tornou-se acontecimento. Freaking out the neighborhood trouxe balanço pop muito reconfortante, Chamber of Reflections, com DeMarco nos sintetizadores, foi balada etérea entre o kitsch 80s e a modernidade do defunto chillwave. E, entre goles na garrafa de whiskey e mais gente subindo ao palco (toda a gente: “Larga esse miúdo e deixa-o subir”, berrou para um segurança mais cioso das suas funções), o concerto transformou-se numa festa deliciosamente tresloucada. DeMarco saltará para o público e será erguido nos seus braços durante longos minutos; DeMarco será abordado a meio do “surf” por um rapaz que achou que fazer o mesmo seria a melhor forma de, naquele contexto, falar com o cantor. Com ele subiria a palco. E mais viriam, incluindo o homem em fato de crocodilo, e o palco já não era da banda, era de todos. DeMarco, desgrenhado, cigarro na mão, rodeado pela dezena em palco, despede-se como crooner desalinhado: Togethe”, canta. Não foi um concerto, foi um encontro. Vimos Mac DeMarco em Paredes de Coura e levamos muitas histórias para contar.

Veremos as que se lhe juntam esta sexta-feira e sábado, dias em que passarão pelo festival Black Lips, Conor Oberst, Linda Martini, Cut Copy (sexta), Kurt Vile, Growlers, Beirut, Goat ou James Blake.