Miley Cyrus ainda não sabe o que fazer à vida adulta

Boa parte do concerto joga-se num braço-de-ferro entre erotização e infantilização. Miley é uma miúda a quem são dados meios para criar as suas fantasias.

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Deve ir uma grande confusão na cabeça de Miley Cyrus. E talvez nenhum outro momento no concerto da superestrela norte-americana no Meo Arena, em Lisboa, seja tão revelador desse pandemónio mental quanto a sua versão de There is a Light that Never Goes Out, original dos The Smiths.

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Deve ir uma grande confusão na cabeça de Miley Cyrus. E talvez nenhum outro momento no concerto da superestrela norte-americana no Meo Arena, em Lisboa, seja tão revelador desse pandemónio mental quanto a sua versão de There is a Light that Never Goes Out, original dos The Smiths.

Miley apresenta o tema como “uma canção que todos vocês conhecem”. Talvez a muito esforçada e repetida tentativa de emancipação artística da cantora, numa hiper sexualização súbita que quis trucidar aquilo que em si restava da púbere e inocente liceal Hannah Montana para no seu lugar fazer emergir uma mulher plena – capaz de competir no campeonato de Beyoncé, Rihanna, ou Britney Spears –, tenha conduzido a uma deturpação delirante de quem é, hoje, o seu público.

Basta olhar à volta, para um mar de bandoletes luminosas que enfeitam os parcos milhares de cabeças que marcaram presença no concerto de Lisboa, para perceber o equívoco. O público de Miley não tem idade para saber quem são os Smiths e não sofreu nenhuma revolução etária: a ex-estrela adolescente é agora uma estrela para adolescentes. Os factos de poupar consideravelmente nas roupas e desenrolar a língua a cada oportunidade não parecem ter cavado um fosso tão grande em relação à Miley de Hannah Montana. No final de There Is a Light…, aliás, Miley baixa-se depois de ser atingida por um objecto arremessado para o palco. Apanha-o e termina a interpretação (pouco inspirada) com um peluche na mão.

Estamos no segmento mais sóbrio do concerto. Miley Cyrus dispensa, antes da sequência final, a grande produção que carrega consigo na digressão de Bangerz e dedica-se a um conjunto de canções acústicas tocadas com a banda num pequeno palco instalado no meio do pavilhão. O formato nada tem de novo mas aproxima-a fisicamente do seu público, ao mesmo tempo que se afasta dele ao tocar uma mão-cheia de versões: Lonesome When You Go (Bob Dylan), Summertime Sadness (Lana del Rey), The Scientist (Coldplay), Hey Ya (Outkast) e Jolene (Dolly Parton). Sem surpresa, tendo em conta o meio em que cresceu, arranca duas cativantes e convincentes interpretações country nos temas de Parton e Dylan. Mas esta Miley, que se empenha em provar a seriedade do seu gesto de maturação, apenas sobrevive no meio do público porque a sua mera presença é um acontecimento.

Língua atrevida
Voltemos ao início e ao seu registo habitual. Num concerto em que já se sabia que as papilas gustativas de Miley Cyrus ocupariam muito espaço, não espantou que a cantora descesse para o palco a partir de uma língua-escorrega tamanho gigante. E Miley lá desce sem demora para se atirar a dois dos temas mais fortes de Bangerz: SMS e 4X4. Pop-r&b numa síntese eficaz, mas atacada pelo habitual som problemático da sala. Rodeada por bailarinos enfiados em fatos de peluche a uma escala humana, como se a boneca ganhasse vida e entrasse em modo cheerleader, tudo parece apontar para uma brincadeira de miúda. 

Aliás, boa parte do concerto de Miley joga-se num braço-de-ferro entre erotização e infantilização. Ou seja, Miley é uma miúda a quem são dados meios para criar as suas fantasias. O espectáculo de Bangerz é, por isso, estranho. A tentativa de choque que tem perpassado a sua recente exposição pública – entre videoclips, sessões fotográficas e entrevistas – ganha em palco uma dimensão diferente. Miley bem se põe a açoitar gratuitamente uma bailarina, bem carrega nas poses lascivas, bem larga uns “fuckin” nas frases que usa para se dirigir ao público, bem cospe sobre os fãs (em delírio) a água que vai “bebendo” de uma garrafa, bem interage com uma variedade de símbolos fálicos em palco, mas é tudo tão excessivo e desconchavado que a sensação instalada no final é a de alguém que não sabe o que fazer da sua chegada à vida adulta. Mais do que choque, é confusão em causa própria.

E essa confusão parece instalar-se também do outro lado do espelho. Apesar do total profissionalismo e da entrega da cantora durante o espectáculo – cuja gravação para posterior edição em DVD obriga à repetição de um par de temas –, desde o início que há um travo amargo no ar. Tal como acontecera dias antes em Barcelona, também em Lisboa a sala está longe de esgotada (claramente a menos de metade da sua capacidade, a plateia muito despida ainda que bastante encurtada). Não é coisa que comprometa o fogo-de-artifício, os confetti, os balões, as notas de dólar esvoaçantes, o êxtase colectivo quando Miley coloca, por segundos, um cachecol de Portugal, mas não é difícil intuir que esta metamorfose de Miley é menos profunda ou acabada do que se previa, presa entre o mundo infantil e o adulto, sem conseguir desembaraçar-se de um para assumir o outro.

Estrategicamente, há por isso muito pouco de um passado anterior a Bangerz no espectáculo. Os melhores momentos acontecem, de facto, em 4X4, Do My Thang, FU e os inevitáveis Wrecking Ball, We Can’t Stop, assentes em boas canções entre a pop adolescente, o r&b sensual e alguma réstia da escola da Broadway e em modo saloon interpretada com banda ao vivo (coisa rara nestas produções). Mas talvez o ponto alto seja mesmo Adore You, uma balada despida (sem segundos sentidos) feita para a voz da cantora brilhar livremente. Miley incentiva o seu público a deixar-se levar pelos afectos e no ecrã gigante que se encontra nas suas costas, durante o tema, vai-se sucedendo a filmagem ao vivo de um número considerável de casais que respondem ao apelo beijando-se avidamente – com uma curiosa incidência de jovens do mesmo sexo, dando uma pista para a imagem de liberdade e afirmação que a cantora faz vingar.

O final da festa, num dos excepcionais regressos ao passado, faz-se com um Party in the USA em que Miley Cyrus surge na pele de uma cowgirl à Madonna, rodeada de Lincoln, Nixon, Estátua de Liberdade e Mount Rushmore, como se assistíssemos a uma megalómana festa de fim de ano no liceu.

Miley está a crescer. Por muito que encha o palco com uma postura confiante e dominadora, este é ainda um pouco grande para ela.

Notícia corrigida às 12h13: alteração da grafia do último álbum de Miley Cyrus