Boicotes, ebooks e Stephen Colbert na guerra entre a Amazon e a Hachette

O teor das negociações entre o gigante das vendas online e um dos gigantes da edição não é conhecido, mas a campanha está na rua. Quem são os bons e os maus?

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Em Maio, começaram os sinais. A Amazon dificultava a compra de livros da editora no seu site americano, eliminava descontos e mesmo certos títulos da Hachette. Dilatava para semanas prazos de entrega que normalmente são de um dia e bloqueava a possibilidade de fazer a pré-compra de publicações muito esperadas como o novo policial de J.K. Rowling, The Silkworm, escrito sob o pseudónimo Robert Galbraith. De acordo com a Hachette, em causa estão mais de 5000 títulos do seu portefólio, que inclui também Malcolm Gladwell, Colbert ou Joshua Ferris.

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Em Maio, começaram os sinais. A Amazon dificultava a compra de livros da editora no seu site americano, eliminava descontos e mesmo certos títulos da Hachette. Dilatava para semanas prazos de entrega que normalmente são de um dia e bloqueava a possibilidade de fazer a pré-compra de publicações muito esperadas como o novo policial de J.K. Rowling, The Silkworm, escrito sob o pseudónimo Robert Galbraith. De acordo com a Hachette, em causa estão mais de 5000 títulos do seu portefólio, que inclui também Malcolm Gladwell, Colbert ou Joshua Ferris.

Eram sinais de um problema mais profundo e que chegou agora ao grande público depois de Stephen Colbert ter, dia 4, mostrado os seus dedos à Amazon. “Bezos, isto é guerra”, disse o humorista no seu programa ao fundador e CEO da Amazon, Jeff Bezos, sobre o facto de os seus e outros livros estarem a ser vítimas do que muitos, editorial do New York Times incluído, já chamaram “bullying”. Lançou a campanha dos autocolantes “I didn't buy it from Amazon” e associou-se a uma livraria online independente para promover livros da Hachette – que já são os mais vendidos da Powell’s Books.

Sendo esta uma guerra fria, não é surda. A 27 de Maio, a Amazon assumiu numa carta no seu fórum de clientes que está a “comprar menos inventário (físico) e stock” de títulos da Hachette e que “já não” está a “aceitar pré-encomendas” da editora, que fez questão de identificar como integrante de “um conglomerado de media de dez mil milhões de dólares”, a Lagardère. Sem revelar os termos do diferendo, a Amazon admite: “não estamos optimistas de que isto se resolva em breve”. E sublinhando que as negociações são “em prol dos clientes” e que a situação afecta apenas 11 em mil dos seus produtos, recomenda mesmo aos clientes que adquiram o que procuram “num dos nossos concorrentes”.

A leveza da sugestão explica-se pelos números: a Amazon começou como uma livraria online mas há muito que os livros se tornaram numa gotícula num oceano de gadgets, sabonetes, electrodomésticos ou brinquedos. “O negócio do livro na Amazon representa cerca de 20%”, diz ao PÚBLICO José Afonso Furtado, ex-director da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian e especialista na área do livro. Mas, ainda assim, estará a lutar por ele e por um segmento particular, o dos livros electrónicos.

Tal como a Amazon, no final de Maio a Hachette comentou também o caso: “É bom ver a Amazon reconhecer que as suas decisões negociais afectam de forma significativa as vidas dos autores”, frisando que o sucedido acontece “por razões suas”. Confiante na normalização das relações com a Amazon, a editora quer fazê-lo em “termos que valorizem apropriadamente nos anos vindouros o papel único do autor na criação de livros e o papel dos editores na sua edição, marketing e distribuição”.

A querela terá a ver com os termos de um novo acordo de vendas de ebooks e estima-se que a Amazon estará a tentar aumentar as suas margens de lucro – o que diminuirá a receita da editora. “Na história do livro existem muitas situações semelhantes que aparecem com vestes novas mas no fundo são sempre lutas de poder e domínio de mercado”, postula José Afonso Furtado.

Pedro Sobral, gestor de marketing do grupo Leya, acredita que esta luta surge quando “a Amazon, que tem tido desde sempre como estratégia a conquista de quota de mercado alavancada no serviço ao consumidor final”, nomeadamente preços baixos, tenha chegado a um momento em que precisou de aumentar a sua rentabilidade e margens de lucro.

Quando do lançamento do iPad, concorrente do leitor Kindle da Amazon, a Apple e as então Big Six, as seis grandes casas de edição (que agora são Big Five depois da fusão da Penguin e Random House) tentaram estabelecer um novo modelo de preços para os livros electrónicos nos EUA, o chamado modelo de agência em que são as editoras que fixam os preços de venda.

Em 2012, o Departamento de Justiça dos EUA acusou as já Big Five – Macmillan, Penguin Random House, Simon & Schuster, HarperCollins e a própria Hachette - de conspiração e cartelização para tentar mudar o sistema de preços. A Apple, também visada, foi vencida mas recorreu. No caso das editoras, as partes chegaram a acordo e os leitores receberam mesmo reembolsos dos valores que o Departamento de Justiça considerou terem sido pagos a mais na aquisição de livros.  

José Afonso Furtado sistematiza: “Na Europa, é o editor que estabelece o preço, o chamado agency model”; nos EUA, a Amazon, exemplifica, “defende o modelo de wholesale [de venda por atacado], em que o vendedor é que decide o preço, e até pode fazer dumping, desde que pague o acordado com a editora”. Ressalvando sempre o pouco que se sabe sobre a negociação em causa, o especialista considera que “o que está em jogo é saber quem controla a decisão fulcral na cadeia de valor do livro. E é um problema muito mais complexo desde o advento dos ebooks, porque a Amazon está a tentar aplicar o modelo wholesale aos ebooks”. L. Gordon Crovitz, colunista do Wall Street Journal, escreveu na semana passada que “a Apple queria evitar exactamente o tipo de negociações prolongadas em que a Amazon e a Hachette estão agora enleadas. Queria que os editores controlassem os preços para encorajar o desenvolvimento de produtos nos ebooks”.

O mesmo diário citava em meados de Maio uma fonte do sector que indica que a Amazon quer agora da Hachette uma percentagem maior do que os actuais 30% do preço de venda que lhe cabem como retalhista de ebooks. Isto porque o negócio dos ebooks gera margens de lucro muito mais elevadas (75% contra os 60 ou 40% dos livros de capa dura ou mole) para os editores do que os livros impressos dados os seus custos associados (impressão, distribuição, armazenamento).

A Amazon controla 65% do mercado de livros electrónicos dos EUA segundo a New Yorker e, diz o New York Times, o “seu poder de mercado” assenta no facto de cerca de 40% de todos os novos livros vendidos nos Estados Unidos o serem através da Amazon (na Alemanha, a cifra supera os 50%).

Pedro Sobral não acredita que estas lutas possam reflectir-se noutros mercados como o europeu, muito por causa da “lei do preço fixo que impede que qualquer retalhista faça acções muito agressivas”, por existirem ainda poucas lojas Amazon locais e pela dimensão do próprio e-commerce de livros. Na Europa, acredita, “a influência da Amazon não lhe permitiria ter esta atitude para com as editoras”. José Afonso Furtado é menos optimista. “Isto já está na Europa”, lembrando o braço de ferro entre a Amazon e o grupo de edição Bonnier, que está também a sofrer atrasos na venda dos seus livros durante as negociações sobre receitas dos livros electrónicos. “A Comissão Europeia não pode olhar para o lado”, sublinha José Afonso Furtado. “Estamos a tentar perceber o que se está a passar lá. Estamos a analisar o caso e a tentar compreender”, disse o comissário europeu para a Concorrência, Joaquim Almunia, na passada quinta-feira.

Alguns escritores encarregaram-se de dar colorido a esta história de bons e maus difusos. A presidente da Guilda dos Autores compara a Amazon ao mafioso televisivo Tony Soprano e Darth Vader, o vilão imperial de Guerra das Estrelas, é figura recorrente – o consultor brasileiro e especialista em estratégia digital do livro Carlo Carrenho lembra que a empresa “sempre foi vista como Darth Vader porque acabou por se tornar um monopólio”. Furtado contextualiza que “é muito perigoso pôr nas mãos de uma só entidade com o poder, a capacidade financeira, de lobby, de imagem e rede global da Amazon algumas decisões sobre como vai evoluir o mercado e que se vão reflectir nas políticas das casas editoriais”.

Do outro lado da barricada, o romancista Barry Eisler manifesta-se “estupefacto pela animosidade anti-Amazon de vários autores do establishment”, lembrando o papel que a empresa teve na criação de um mercado para o livro digital e da primeira plataforma viável de auto-publicação, ripostando que as Big Five “gerem a indústria como um cartel”.

Por seu turno, a Associação Americana de Livrarias partilha alegremente banners na Internet em que diz “Obrigada Amazon, as [livrarias] independentes tratam do assunto a partir de agora” ou “As livrarias independentes vendem livros de todas as editoras. Sempre”. Mas estará a Amazon a perder uma guerra de relações públicas? Segundo a consultora internacional YouGov, houve apenas uma quebra “diminuta” em Maio na forma como a empresa é vista nos EUA.  

O mantra da Amazon sobre o seu foco nos consumidores produziu agora um paradoxo, dizem Pedro Sobral e Carlo Carrenho, porque ao “boicotar a Hachette presta um mau serviço ao consumidor”, explica o gestor português. “O que surpreende um pouco é a demora que está a ter para se resolver esta questão” diz Carrenho, lembrando um braço de ferro com a Macmillan em 2010 em que a Amazon eliminou o botão de compra no seu site para publicações daquele grupo, mas por poucos dias. “A questão é até onde a Amazon vai deixar de oferecer um livro da J.K. Rowling prejudicando as pessoas para ganhar uma briga com a Hachette?”, acrescenta Carrenho.