A mosca tsé-tsé e a sua família vistas à lupa da genética

O genoma da mosca tsé-tsé foi sequenciado por um consórcio internacional, um trabalho que demorou uma década. A mosca tsé-tsé da espécie Glossina morsitans é uma das que transmite o parasita que causa a doença do sono.

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“O nosso estudo vai acelerar a investigação com o objectivo de explorar a biologia invulgar da mosca tsé-tsé. Se compreendermos mais, seremos capazes de identificar melhor as fraquezas e usá-las para controlar a mosca”, defende Matthew Berriman, um dos principais autores deste projecto, que pertence ao Instituto Wellcome Trust Sanger, no Reino Unido.

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“O nosso estudo vai acelerar a investigação com o objectivo de explorar a biologia invulgar da mosca tsé-tsé. Se compreendermos mais, seremos capazes de identificar melhor as fraquezas e usá-las para controlar a mosca”, defende Matthew Berriman, um dos principais autores deste projecto, que pertence ao Instituto Wellcome Trust Sanger, no Reino Unido.

A sequenciação ficou a cargo do consórcio Iniciativa Internacional Genoma Glossina, que envolveu 146 cientistas de 18 países diferentes. Os trabalhos iniciaram-se em 2004.

A doença do sono, ou tripanossomíase humana africana, é uma das 17 doenças tropicais negligenciadas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A doença existe em 26 países da África subsariana. Em 2012, foram registados 7216 casos. O país mais afectado é a República Democrática do Congo.

Além das pessoas, esta doença também afecta o gado. As moscas “causam um enorme fardo económico nos países com mais dificuldades, ao obrigar os agricultores a criar gado mais resistente à tripanossomíase, mas que é um gado menos produtivo”, explicou ainda Matthew Berriman num comunicado do instituto.

O parasita Trypanosoma brucei nem sempre consegue instalar-se nas glândulas salivares da mosca Glossina morsitans. Mas quando o faz, a mosca torna-se um vector de transmissão do parasita tripanossoma. Segundo a OMS, a doença tem duas fases. Na primeira, depois de uma pessoa ser picada e infectada, o parasita multiplica-se no sangue e nos gânglios linfáticos, causando dores de cabeça, febre e dores nas articulações.

Passadas algumas semanas, o tripanossoma consegue atravessar a barreira hematoencefálica – uma espécie de parede que normalmente impede organismos patogénicos que existem no sangue de infectar o cérebro. Quando o parasita consegue atravessar esta barreira, provoca os sintomas mais perigosos: mudanças de comportamento, distúrbio dos sentidos e a destabilização do ciclo de sono – esta é a razão do nome da doença. As pessoas podem ficar a dormir de dia e manterem-se completamente acordadas de noite. Os danos no sistema nervoso são irreversíveis e, se a doença não for tratada (à custa de medicamentos tóxicos), os doentes morrem passados meses ou anos.

O novo estudo genético revela que o genoma da mosca Glossina morsitans tem mais do dobro do tamanho do da mosca-do-vinagre. Apesar disso, sentir sabores não é o forte deste insecto: a equipa descobriu que a mosca tsé-tsé tem 46 proteínas importantes para detectar cheiros e 14 proteínas para detectar sabores, enquanto a mosca-do-vinagre tem, respectivamente, 58 e 73 proteínas. O sabor do açúcar passa completamente despercebido à mosca tsé-tsé e os investigadores interpretam este facto dizendo que tanto o macho como a fêmea só se alimentam de sangue.

Para encontrar alimento, a mosca tsé-tsé tem muitas proteínas que detectam dióxido de carbono, exalado pelos mamíferos. E, enquanto se alimenta, 250 proteínas que tem na saliva impedem o sangue de coagular e não deixam que reacções imunitárias produzidas pela vítima das suas picadas terminem a refeição antes de tempo – a mosca suga uma quantidade de sangue equivalente ao seu volume, por isso leva tempo até beber tudo o que precisa.

O artigo na Science também identifica várias aquaporinas – proteínas que funcionam como canais membranares de transporte de água – e que permitem à mosca livrar-se de água a mais vinda no sangue.

Além do tripanossoma, a família da mosca tsé-tsé também inclui a bactéria Wigglesworthia glossinidia e os cientistas também sequenciaram o ADN dela. A Wigglesworthia glossinidia tem uma relação de simbiose com a mosca tsé-tsé: genes da bactéria sintetizam a vitamina B, que por sua vez é utilizada pela mosca. Esta bactéria vive em células do tubo digestivo da mosca e é transmitida da mãe mosca para a larva filha.

Ao contrário da maioria dos insectos, a mosca tsé-tsé não põe ovos: produz um único ovo que fica a crescer no seu interior, alimentado uma espécie de leite produzido pela mãe, até atingir um certo nível de desenvolvimento e a larva nascer. O estudo genómico permitiu aos investigadores identificar muitas proteínas desse leite. Segundo o artigo da Science, “a combinação das proteínas do leite da Glossina é, a nível funcional, notavelmente parecido com a combinação existente no leite dos mamíferos”.