Um segredo colado à pele

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Atentemos agora no que ocorre longe dos olhares públicos: qual é o segredo mais mal guardado da nossa cultura popular? A alcunha que Thomas Pynchon deu ao seu cachorro? A verdadeira actividade que decorre subrepticiamente na Área 51? Ou o melhor disco de estreia a solo presente no YouTube que não conheceu até hoje edição oficial? Tudo questões a que podemos responder mediante quantia a designar, sendo que a última é fácil de mais e por isso respondemos de graça: trata-se deCavalo, de Rodrigo Amarante, que há umas semanas encheu o Passos Manuel, no Porto. Concerto anunciado no próprio dia, e mesmo assim sala repleta: desde queCavalo caiu no YouTube, uma massa de gente ficou agarrada, esperando que Amarante surgisse lá do seu retiro, enfim, que desse prova de que aquela coisa no YouTube existia. A aparição confirmou que sim, ele existe é o segredo mais mal guardado da música popular dos nossos dias. E foi no Porto que o apanhámos, ao telefone, para recapitular a história desde o princípio. Rodrigo Amarante — para quem não conhece, fez parte de Los Hermanos e dos Little Joy e ainda é parte da Orquestra Imperial (ver caixa) — tinha estado em Portugal a abrir concertos para Devendra Banhart e foi aí que desatámos a procurá-lo e a dar de caras com um disco inteiro gravado a 23 de Setembro e até hoje por editar fora do Brasil (está a tardar mas chegará). Cavalo não é selvagem, pelo menos no sentido de dar patadas. Mas, idiossincrático como é, não pode ser domado. Quem deu uma volta no Cavalo ficou agarrado e passou-o ao próximo, assim como quem partilha o mais importante dos segredos. 

Se apanhámos Rodrigo no Porto foi porque o brasileiro veio “fazer vídeos para o disco”. “Não é só uma peça comercial, a ideia é ampliar a música”, diz. Por trás das imagens está o português André Tentúgal, de quem é “amigo há dez anos”. Entretanto, e como homem de supremo bom gosto que é, apaixonou-se: “O Porto me escolheu”, revela. E nós, os que andamos a dar em Cavalo há muito, escolhemos este disco, que está quase a deixar de ser segredo e vai para as lojas no dia 5. A seguir, em Junho, há concertos: a 4 na ZDB, em Lisboa, um dia depois no Optimus Primavera Sound, no Porto. 

Satélite sem órbita

Se Cavalo saiu lentamente da obscuridade da net para o mundo, tal faz rima com o feitio do seu autor, que quase parafraseia Yeats quando este dizia que “um poema pode demorar cinco anos a fazer mas quando se lê tem de parecer ter sido escrito em cinco minutos”. “No meu caso”, justifica-se Rodrigo, “a procura do que quero por vezes é penosa. Sou um compositor que escreve, reescreve, pensa em cada palavra. Faço-me as perguntas mais difíceis porque espero que a canção sirva alguém. Mas a ideia é que a canção soe como se não tivesse muita luta para sair. É esculpir um cavalo com um martelo de ourives.”

Ao longo de quase toda a sua vida, trabalhou em grupo. Enquanto estudava Jornalismo conheceu Marcelo Camelo e Rodrigo Barba e juntos formaram Los Hermanos, que duraram quatro discos. Depois, com Moreno Veloso e a malta do projecto +2 — entre outros — criou a Orquestra Imperial, que recria as big-bands brasileiras do antigamente. Enfim, mudou-se para Los Angeles e com Fabrizio Moretti, dos Strokes, e Binki Shapiro, ex-namorada de Moretti, surgiu com os Little Joy. Só agora o conhecemos a solo. “Trabalhando a vida inteira em grupos, sempre pensei: ‘Se fosse só eu fazia diferente’. Mas nunca fantasiei com isso, achava cafona. Mas a coisa de fazer arranjos só, fazer tudo só, sempre gostei muito. Então pensei que tinha chegado o momento e caí completamente dentro. No processo, descobri coisas sobre mim. De repente, o que eu faço tem o meu nome, então tudo vai ser tomado por auto-retrato”, confessa. 

A criação de Cavalo — em que canta em português, inglês e francês — tem um lado de busca identitária. Rodrigo foi saindo do Brasil “por convites”, mas “a dado momento tornou-se uma decisão consciente”. “Percebi que começar de novo seria um tesouro inestimável: não ser conhecido, escrever músicas noutras línguas, é incrível. Do ponto de vista comercial é loucura, mas arrancar a máscara que começava a ficar grudenta nesse espelho móvel é maravilhoso”, reflecte.

Ser estrangeiro, admite, tem um lado violento — sentia-se “inferior intelectualmente por conta da restrição do vocabulário, ou por não entender o humor do outro” —, mas acaba a “gerar uma aceitação de si, das próprias limitações”. Fora do Brasil, foi forçado “a entender quem é”, até por resistência. Na constituição dos EUA, exemplifica, “tem uma coisa que diz que as pessoas têm o direito a serem felizes”: “Então, o americano, quando não está se divertindo, se acha como que privado de um direito. Tem uma inabilidade de lidar com a melancolia, com a pausa”.

Talvez por isso, Cavalo é lento e passa por melancólico”. E no entanto ele garante “não o ser” e assegura que “foi uma leveza enorme” livrar-se “das ideias que ocupam o disco”. Ou, numa frase: “Triste é quem não chora”. Cavalo tem pouco a ver com a pop que coloniza as rádios, mas está longe de ser aberrante. A sua abrangência é enorme: Hourglass soa a Notwist, e o mesmo se poderia dizer do cruzamento da guitarra dedilhada com beats e melodia de Mon nom, em que Rodrigo pensa a sua condição de estrangeiro. Mas Nada em vão lembra a velha pop brasileira, quando esta começou a libertar-se do samba e da bossa. E a lindíssima Irene não cairia mal no cânone de João ou de Tom. Em Maná, Rodrigo é todo brasileiro, guitarra picada tão funk quanto cavaquinho no samba, batida, órgãos avariados. E se alguém dissesse que O cometa vinha da pop brasileira dos anos 1950 ninguém estranharia. 

Ao piano, à guitarra, ao violão, ao órgão, com escassos mas preciosamente medidos arranjos, Cavalo avança manso e belo. Quando se atinge o fim na forma da extraordinária balada Tardei, pouco importa se é um disco brasileiro ou americano, de agora ou de antes: é um lindíssimo satélite sem órbita, pairando a destempo e com modos tímidos a esconder a beleza. É lamento para durar muitos anos, os seus coros ecoando nas nossas sinapses até morrermos. E Rodrigo podia desnascer hoje que já teria deixado mais do que o suficiente para ficar gravado na nossa pele. “Não tenho noção nenhuma de que o meu disco vai explodir”, diz, respondendo ao nosso voto de que Cavalo irá tornar-se enorme: “É uma novidade.” 

O que ele sabe é que por fim se sente resolvido. “Devo muito à língua portuguesa, está no meu nome. Tardei é uma música que escrevi sobre o imaginário náutico, é uma história contada da beira do mar. Queria fazer o vídeo de Tardei aqui, no Porto.”

E assim se despede aquele que vai deixar de ser o melhor e mais mal guardado segredo da cultura popular dos nossos dias para se tornar uma grande personagem de culto. Rodrigo tardou mas jamais se irá embora.
 

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Atentemos agora no que ocorre longe dos olhares públicos: qual é o segredo mais mal guardado da nossa cultura popular? A alcunha que Thomas Pynchon deu ao seu cachorro? A verdadeira actividade que decorre subrepticiamente na Área 51? Ou o melhor disco de estreia a solo presente no YouTube que não conheceu até hoje edição oficial? Tudo questões a que podemos responder mediante quantia a designar, sendo que a última é fácil de mais e por isso respondemos de graça: trata-se deCavalo, de Rodrigo Amarante, que há umas semanas encheu o Passos Manuel, no Porto. Concerto anunciado no próprio dia, e mesmo assim sala repleta: desde queCavalo caiu no YouTube, uma massa de gente ficou agarrada, esperando que Amarante surgisse lá do seu retiro, enfim, que desse prova de que aquela coisa no YouTube existia. A aparição confirmou que sim, ele existe é o segredo mais mal guardado da música popular dos nossos dias. E foi no Porto que o apanhámos, ao telefone, para recapitular a história desde o princípio. Rodrigo Amarante — para quem não conhece, fez parte de Los Hermanos e dos Little Joy e ainda é parte da Orquestra Imperial (ver caixa) — tinha estado em Portugal a abrir concertos para Devendra Banhart e foi aí que desatámos a procurá-lo e a dar de caras com um disco inteiro gravado a 23 de Setembro e até hoje por editar fora do Brasil (está a tardar mas chegará). Cavalo não é selvagem, pelo menos no sentido de dar patadas. Mas, idiossincrático como é, não pode ser domado. Quem deu uma volta no Cavalo ficou agarrado e passou-o ao próximo, assim como quem partilha o mais importante dos segredos. 

Se apanhámos Rodrigo no Porto foi porque o brasileiro veio “fazer vídeos para o disco”. “Não é só uma peça comercial, a ideia é ampliar a música”, diz. Por trás das imagens está o português André Tentúgal, de quem é “amigo há dez anos”. Entretanto, e como homem de supremo bom gosto que é, apaixonou-se: “O Porto me escolheu”, revela. E nós, os que andamos a dar em Cavalo há muito, escolhemos este disco, que está quase a deixar de ser segredo e vai para as lojas no dia 5. A seguir, em Junho, há concertos: a 4 na ZDB, em Lisboa, um dia depois no Optimus Primavera Sound, no Porto. 

Satélite sem órbita

Se Cavalo saiu lentamente da obscuridade da net para o mundo, tal faz rima com o feitio do seu autor, que quase parafraseia Yeats quando este dizia que “um poema pode demorar cinco anos a fazer mas quando se lê tem de parecer ter sido escrito em cinco minutos”. “No meu caso”, justifica-se Rodrigo, “a procura do que quero por vezes é penosa. Sou um compositor que escreve, reescreve, pensa em cada palavra. Faço-me as perguntas mais difíceis porque espero que a canção sirva alguém. Mas a ideia é que a canção soe como se não tivesse muita luta para sair. É esculpir um cavalo com um martelo de ourives.”

Ao longo de quase toda a sua vida, trabalhou em grupo. Enquanto estudava Jornalismo conheceu Marcelo Camelo e Rodrigo Barba e juntos formaram Los Hermanos, que duraram quatro discos. Depois, com Moreno Veloso e a malta do projecto +2 — entre outros — criou a Orquestra Imperial, que recria as big-bands brasileiras do antigamente. Enfim, mudou-se para Los Angeles e com Fabrizio Moretti, dos Strokes, e Binki Shapiro, ex-namorada de Moretti, surgiu com os Little Joy. Só agora o conhecemos a solo. “Trabalhando a vida inteira em grupos, sempre pensei: ‘Se fosse só eu fazia diferente’. Mas nunca fantasiei com isso, achava cafona. Mas a coisa de fazer arranjos só, fazer tudo só, sempre gostei muito. Então pensei que tinha chegado o momento e caí completamente dentro. No processo, descobri coisas sobre mim. De repente, o que eu faço tem o meu nome, então tudo vai ser tomado por auto-retrato”, confessa. 

A criação de Cavalo — em que canta em português, inglês e francês — tem um lado de busca identitária. Rodrigo foi saindo do Brasil “por convites”, mas “a dado momento tornou-se uma decisão consciente”. “Percebi que começar de novo seria um tesouro inestimável: não ser conhecido, escrever músicas noutras línguas, é incrível. Do ponto de vista comercial é loucura, mas arrancar a máscara que começava a ficar grudenta nesse espelho móvel é maravilhoso”, reflecte.

Ser estrangeiro, admite, tem um lado violento — sentia-se “inferior intelectualmente por conta da restrição do vocabulário, ou por não entender o humor do outro” —, mas acaba a “gerar uma aceitação de si, das próprias limitações”. Fora do Brasil, foi forçado “a entender quem é”, até por resistência. Na constituição dos EUA, exemplifica, “tem uma coisa que diz que as pessoas têm o direito a serem felizes”: “Então, o americano, quando não está se divertindo, se acha como que privado de um direito. Tem uma inabilidade de lidar com a melancolia, com a pausa”.

Talvez por isso, Cavalo é lento e passa por melancólico”. E no entanto ele garante “não o ser” e assegura que “foi uma leveza enorme” livrar-se “das ideias que ocupam o disco”. Ou, numa frase: “Triste é quem não chora”. Cavalo tem pouco a ver com a pop que coloniza as rádios, mas está longe de ser aberrante. A sua abrangência é enorme: Hourglass soa a Notwist, e o mesmo se poderia dizer do cruzamento da guitarra dedilhada com beats e melodia de Mon nom, em que Rodrigo pensa a sua condição de estrangeiro. Mas Nada em vão lembra a velha pop brasileira, quando esta começou a libertar-se do samba e da bossa. E a lindíssima Irene não cairia mal no cânone de João ou de Tom. Em Maná, Rodrigo é todo brasileiro, guitarra picada tão funk quanto cavaquinho no samba, batida, órgãos avariados. E se alguém dissesse que O cometa vinha da pop brasileira dos anos 1950 ninguém estranharia. 

Ao piano, à guitarra, ao violão, ao órgão, com escassos mas preciosamente medidos arranjos, Cavalo avança manso e belo. Quando se atinge o fim na forma da extraordinária balada Tardei, pouco importa se é um disco brasileiro ou americano, de agora ou de antes: é um lindíssimo satélite sem órbita, pairando a destempo e com modos tímidos a esconder a beleza. É lamento para durar muitos anos, os seus coros ecoando nas nossas sinapses até morrermos. E Rodrigo podia desnascer hoje que já teria deixado mais do que o suficiente para ficar gravado na nossa pele. “Não tenho noção nenhuma de que o meu disco vai explodir”, diz, respondendo ao nosso voto de que Cavalo irá tornar-se enorme: “É uma novidade.” 

O que ele sabe é que por fim se sente resolvido. “Devo muito à língua portuguesa, está no meu nome. Tardei é uma música que escrevi sobre o imaginário náutico, é uma história contada da beira do mar. Queria fazer o vídeo de Tardei aqui, no Porto.”

E assim se despede aquele que vai deixar de ser o melhor e mais mal guardado segredo da cultura popular dos nossos dias para se tornar uma grande personagem de culto. Rodrigo tardou mas jamais se irá embora.
 

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Rodrigo Amarante
Cavalo
Kartel; distri. Popstock