Jornalistas da Crimeia são proibidos de fazer a cobertura do referendo

Televisões ucranianas foram silenciadas pelo novo poder na península que se quer entregar à Rússia. Os jornalistas lêem as notícias que lhes põem à frente e são impedidos de cobrir os acontecimentos. "Tenho vergonha", diz uma conhecida jornalista, que agora empresta o rosto à propaganda oficial.

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Manifestação pró-russa em Sebastopol, na Crimeia VIKTOR DRACHEV/AFP

À entrada do edifício da TV Mar Negro há dois aquários, um póster de Iulia Timoshenko, a líder do partido ucraniano Pátria, e um monitor com a emissão do canal. Mas a imagem que surge no ecrã é a do Rossyia 24, um canal russo.

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À entrada do edifício da TV Mar Negro há dois aquários, um póster de Iulia Timoshenko, a líder do partido ucraniano Pátria, e um monitor com a emissão do canal. Mas a imagem que surge no ecrã é a do Rossyia 24, um canal russo.

Elvira Jallal, 21 anos, é pivot dos noticiários e repórter especializada em crimes e conflitos. Diz ser jornalista por vocação, estudou Comunicação Social na Universidade de Teveride, em Simferopol. É filha de mãe ucraniana e pai afegão, tem olhos escuros e pele clara, e é o rosto da TV do Mar Negro. Há duas semanas, maquilhou-se, sentou-se como habitualmente no estúdio do 3º andar para ler as notícias, quando reparou que no monitor onde deveria aparecer o genérico que precede a abertura do jornal havia uma imagem estranha.

“Quando olhei, vi que no ecrã estava um programa do Rossyia 24. O novo governo da Crimeia cortou a nossa emissão, sem avisar. Simplesmente bloqueou o sinal da antena”. A TV Mar Negro continuou a emitir apenas por cabo e satélite. Mais de 50% da audiência ficou sem o canal.

Os 11 jornalistas dos estúdios de Sinferopol continuaram a trabalhar, apesar de já não serem vistos em antena aberta. Mas mesmo assim as autoridades tentam bloquear-lhes o acesso a todos os acontecimentos relevantes da península. “As milícias russas são muito agressivas connosco”, diz Elvira. “Bloqueiam-nos a entrada em todo o lado. Há dias fui fazer uma reportagem à zona de entrada na península. Fomos barrados num checkpoint, e quando viram quem éramos, fizeram-nos entrar num carro, com um homem armado, levaram-nos para um local onde nos fizeram esperar meia-hora, até receberem ordens. Depois transportaram-nos para longe dali”.

"Não nos deixam fazer nada"
Quando o representante do secretário-geral da ONU foi ameaçado e obrigado a refugiar-se num café em Simferopol, Elvira correu para lá. Uma vez no local, proibiram-na de falar com Robert Serry. Ameaçaram tirar-lhe a câmara e obrigaram-na a afastar-se.

“Os grupos de auto-defesa não me deixam fazer nada. Tenho muito medo. Eles agridem os jornalistas, apreendem o material. E está cada vez pior, em cada dia”.

Quanto ao referendo do próximo domingo, as autoridades já fizeram saber aos jornalistas locais que a cobertura vai ser proibida. “Disseram-nos que não poderemos filmar nos locais de voto, nem entrevistar ninguém”, diz Elvira. “Por mim, também não tenho vontade de noticiar o referendo. Tal como tenciono boicotar a votação, por considerar o referendo ilegal, também gostaria de boicotar a cobertura. Mas farei o que os meus editores decidirem”.

Elvira não se imagina a fazer jornalismo numa Crimeia governada por Moscovo. “Eu sei como é o jornalismo na Rússia. Por isso, se a anexação se concretizar, já estou a preparar o meu portfolio, para tentar encontrar trabalho noutras regiões da Ucrânia, ou na Europa. Tenho muita pena, porque gostava de trabalhar aqui”.

Antes, praticava-se na TV Mar Negro um jornalismo livre, embora não totalmente, admite Elvira. O canal é propriedade de dois deputados do Pátria, partido sobre o qual não convinha fazer reportagens muito negativas. “Mas podia-se criticar, até certo ponto. E abordar todo o tipo de temas. Agora, o que tentamos fazer é dizer a verdade sobre o que se passa. Os canais russos mentem, manipulam, só fazem propaganda”.

Tal como a TV Mar Negro, todos os outros canais ucranianos, incluindo o Chanel 5 e o 1+1, foram silenciados na Crimeia, substituídos por canais russos. A excepção foi o canal da comunidade tártara, cuja emissão prossegue normalmente. Não se sabe porque foi poupado, nem até quando.

O caso do CrimTV é diferente. As milícias russas vieram e encerraram o canal por um dia. A seguir reabriram, com um novo “produtor”, e nova “linha editorial”. O CrimTV é um canal de notícias. Como é do Estado, mudou de mãos, como tudo o resto. Margarita, uma jornalista a quem incumbiram de impedir o acesso de estranhos (incluindo repórteres estrangeiros) à redacção, garante que tudo está a funcionar normalmente. E ainda declara, com voz indignada, que quem decidiu encerrar os outros canais da Crimeia foi o governo de Kiev, “porque já abandonou o povo da Crimeia”.

A um canto do jardim em frente do edifício, porém, Natasha e uma amiga fumam um cigarro. Não falam muito com os outros cerca de 40 jornalistas porque, explicam, “ninguém confia em ninguém. Não queremos saber quem é que está de um lado e do outro. Já ninguém discute nada. Estamos todos muito cansados”.

Natasha, 28 anos, uma franja de cabelo castanho claro cortada em linha recta sobre os olhos verdes, e maquilhada para entrar no ar, é a pivot do canal. Lê os noticiários de hora a hora, durante o dia inteiro.

Estudou russo e literatura na universidade, mas optou por trabalhar em jornalismo, desde há oito anos, por influência da irmã mais velha, também jornalista, que trabalha em Kiev. “Este canal nunca foi totalmente livre, porque é estatal”, diz Natasha. “Sempre houve algumas interferências. Mas era possível criticar o Governo”. Agora, os jornalistas são obrigados a dizer o que lhes mandam. Natasha sempre escreveu as notícias que lia. Agora lê textos que lhe são entregues previamente escritos.

"Não concordo com o que leio"
“Não concordo com nada do que leio. Mas não posso desobedecer, ou serei despedida. E eu não tenho outro emprego para onde ir. Sou obrigada a aceitar. Nenhum jornalista se demitiu”. Nas notícias que lê, Natasha é obrigada a referir-se ao governo de Kiev invariavelmente como “fascistas” ou “nazis”. Ela que tem amigos e familiares noutras regiões da Ucrânia, que apoiam o novo governo saído da revoltas da Maidan. É obrigada a noticiar que os “fascistas” estão a caminho para atacar os russos da Crimeia, que os militares russos vieram para ajudar, que só o referendo que levará à anexação os pode salvar, que as condições económicas serão muito melhores depois da anexação, etc.

“Eu sou ucraniana. Não quero mudar”, sussurra Natasha, cujo rosto é famoso na Crimeia. As pessoas conhecem-na e confiam nela. As suas mentiras, sabe-o, assumem uma gravidade maior. Por isso sente que está a trair. “Não sei o que fazer. Não posso perder este emprego. Mas tenho vergonha. O que faria no meu lugar?”, diz ela, num esforço por se justificar, perante jornalistas.

Depois do referendo, Natasha tenciona sair da Crimeia. Não sabe exactamente quando, talvez no dia em que a obriguem a alterar os documentos de identificação. O jornalismo nunca foi por aqui uma actividade muito livre ou nobre, na generalidade dos casos. Mas o que acaba de acontecer fez Natasha questionar-se pela primeira vez sobre a sua missão. “O que devo fazer?”, repete ela. “O que devo fazer?”

Num gesto em tudo semelhante ao das novas autoridades russas da Crimeia, o governo de Kiev encerrou os canais russos, que deixaram de poder ser vistos em território ucraniano. O Rossyia 1, o Rossyia 24, a NTV o Chanel 1, todos eles foram cancelados, substituidos pelo sinal das estações ucranianas, em nome da “segurança nacional”. Pelo menos na propaganda, começou a guerra sem quartel.