A juventude perpétua de um mestre que não se tomava por autor
“Depois de trabalhar com ele vemos as coisas de maneiras diferentes”, dizia há duas semanas Caroline Silhol. Resnais pelos seus
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Na altura, ninguém saberia (embora talvez se suspeitasse) que Aimer, Boire et Chanter, nova adaptação de uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn, ficaria como o último filme de Resnais. (Falava-se já de projectos para um novo filme, com a estreia em França de Aimer, Boire et Chanter marcada apenas para fim de Março.) Já se temera que o anterior Vous n'avez rien vu! (2012, inédito em Portugal), contando a reunião de um grupo de actores que participaram, em momentos diferentes, em produções teatrais dirigidas por um encenador recém-falecido, fosse uma espécie de “testamento”.
Aimer, Boire et Chanter apenas sublinhava essa dimensão: o título original da peça de Ayckbourn, retido como título inglês do filme, é The Life of Riley, “a vida de Riley”, referindo-se a George Riley, que descobre ter apenas seis meses de vida. Ora, toda a história, centrada em três casais amigos cujas relações são afectadas pela notícia ao longo desses seis meses, roda à volta de George – mas a sua personagem nunca é vista nem ouvida, apesar de estar sempre na berlinda. Daí a compará-lo ao próprio Resnais, que não se deslocou a Berlim enquanto quase todo o elenco - as actrizes Sabine Azéma, igualmente companheira de Resnais desde os anos 1980, Sandrine Kiberlain e Caroline Silhol, e os actores André Dussollier e Hippolyte Girardot – se desdobrava em entrevistas, vai um passo que quase toda a imprensa presente no festival não resistiu a dar.
“É uma vantagem conhecermo-nos bem, termos uma familiaridade, uma intimidade na vida e no trabalho,” dizia o actor francês, cúmplice do cineasta ao longo de 30 anos. “Mas, ao mesmo tempo, ele está sempre a surpreender-nos quando nos propõe os papéis, e sentimo-nos obrigados a responder na mesma medida. É como se fizéssemos parte de uma troupe teatral, onde estamos sempre numa espécie de juventude perpétua que ele tem e para a qual nos arrasta.” Caroline Silhol reforçava a ideia, comparando a evolução da obra de Resnais com a dos pintores que vão “aclarando” as cores das suas obras com o correr do tempo.
Ao contrário de Dussollier e Azéma, Silhol rodava apenas pela segunda vez com o cineasta, após Quero Ir para Casa (1989), e confessava o seu desconforto pelo seu estatuto de “monstro sagrado”. “A ideia de rodar com o que pode muito bem ser o último grande mestre vivo do mundo do cinema é bastante aterrorizadora”, disse entre sorrisos. Para acrescentar: “Mas, ao chegarmos ao plateau, depois das longas conversas que tivemos sobre as personagens, parece que somos arrebatados pela sua criatividade. Ele é um caso à parte, tem uma espécie de génio que mais ninguém pode encarnar. A mente dele é outra coisa, não é possível encaixá-lo numa gaveta. Depois de trabalhar com ele, vemos as coisas de maneiras diferentes. Como se nos tivesse dado a liberdade.”
Uma liberdade que só seria possível vinda de um cineasta que, nas palavras de André Dussollier, nunca se tomou por “autor” mas apenas por “realizador” e que nunca perdeu a sua curiosidade e vontade de experimentar coisas novas, como disse Sabine Azéma.
Alain Resnais vai fazer-nos muita falta.