Uma ópera de Rossini borbulhante como champanhe

A estreia em Portugal de Il Viaggio a Reims dá início na quarta-feira à temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos assinada por Paolo Pinamonti mas a restante programação continua por divulgar com a excepção do próximo título: a zarzuela El Gato Montés, de Manuel Penella.

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Esta noite, às 20h, chega ao Teatro Nacional de São Carlos, por iniciativa de Paolo Pinamonti, que retomou recentemente a colaboração com teatro lisboeta na qualidade de consultor artístico. Trata-se de uma produção do Teatro Real de Madrid em colaboração com o Festival Rossini de Pesaro, com encenação do espanhol Emilio Sagi e direcção musical da maestrina chinesa Yi-Chen Lin. Das 17 personagens, 13 são interpretadas por cantores portugueses, na sua maioria ainda bastante jovens.

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Esta noite, às 20h, chega ao Teatro Nacional de São Carlos, por iniciativa de Paolo Pinamonti, que retomou recentemente a colaboração com teatro lisboeta na qualidade de consultor artístico. Trata-se de uma produção do Teatro Real de Madrid em colaboração com o Festival Rossini de Pesaro, com encenação do espanhol Emilio Sagi e direcção musical da maestrina chinesa Yi-Chen Lin. Das 17 personagens, 13 são interpretadas por cantores portugueses, na sua maioria ainda bastante jovens.

Quanto ao resto da temporada, continua no segredo dos deuses sem ser dada uma explicação plausível. Ao PÚBLICO, Paolo Pinamonti adiantou apenas que em Março subiria à cena a zarzuela El Gato Montés (1917), de Manuel Penella, uma produção do Teatro de La Zarzuela (onde é director) distinguida em 2012 com o Prémio Lírico Teatro Campoamor. “Conta com cantores excelentes que se estão a distinguir internacionalmente, como Saioa Hernández, Ángel Ódena e Andeka Gorrotxategui, e a coreografia é da grande Cristina Hoyos”, explicou, acrescentando que a apresentação em Lisboa conta com o patrocínio da Acción Cultural Española, um organismo público que se dedica à promoção da cultura espanhola. 

Quanto a Il Viaggio a Reims, que pode ser vista no São Carlos até 11 de Fevereiro, trata-se da ópera com libreto de Luigi Balocchi que Rossini escreveu para as comemorações da coroação de Charles X de França em 1825. Apesar do sucesso obtido na época, o compositor considerou-a uma obra de circunstância, vindo a reutilizar parte do material em Le Comte Ory (1828). A partitura original acabaria por desaparecer e foi sendo reconstituída através de várias investigações até à edição crítica de Janet Johnson usada no Festival de Pesaro de 1984. A acção passa-se num spa (o hotel termal O Lírio de Ouro em La Plombières), dirigido por Madame Cortese, no qual descansa temporariamente um grupo de viajantes de luxo de várias nacionalidades a caminho da cerimónia da coroação de Charles X em Reims.  Uma série de peripécias faz com que nunca cheguem ao destino.

Para o encenador Emilio Sagi, esta ópera é “comparável a uma cantata”, pois tem muito pouca acção dramática. “Quase não há argumento e esse é um dos grandes desafios. Mas a mim interessa-me muito esta gente que faz uma viagem para lado nenhum. É um pouco o absurdo da vida moderna, a espera de Godot que nunca chega, a viagem que nunca se faz.” Por isso decidiu passar a acção para o nosso tempo. “As óperas de Rossini, sobretudo as cómicas, possuem uma espécie de ‘loucura organizada’, que é muito contemporânea. Encontramos vários paralelos com o teatro do absurdo.”

O encenador sublinha que a música é de grande virtuosismo, pelo que “os cantores têm sempre de estar muito atentos ao maestro”, e refere momentos impressionantes como o grande concertante a 14 vozes do final do 2º acto. No que diz respeito às personagens confessa ter dado indicações muito precisas, mas também alguma liberdade pessoal. “O bom desta profissão é trabalhar com artistas. Quis que cada  personagem tivesse uma humanidade e uma personalidade diferente. Por exemplo a Condessa de Folleville, como o nome indica, é uma louca total, uma fashion victim que apenas está preocupada porque perdeu o chapéu”, conta. “A Marquesa Melibea é uma mulher que mente, que quer estar sempre rodeada de homens e é coquete com todos, que bebe... e Corinna vive nas nuvens, é uma poetisa, mas é também uma mulher que conhece os homens como mostra no dueto com o Cavaleiro Belfiore, um sedutor de pacotilha.” Dos homens, Emilio Sagi acha que “o mais honesto é o Barão de Trombonok, que diz que no mundo é preciso ter um pouco de loucura para poder viver”.

Emilio Sagi tem no seu curriculum inúmeras óperas cómicas de Rossini, incluindo O Barbeiro de Sevilha, que abriu a última temporada do Teatro Real de Madrid e que foi uma co-produção com o São Carlos de Lisboa, onde estreou em 2005. A estreia do encenador espanhol no repertório sério de Rossini surgirá apenas no próximo ano com Tancredi na Ópera de Lausanne. A presente produção de Il Viaggio a Reims tem sido apresentada em vários teatros, tanto por cantores com grandes carreiras como por jovens. “Na primeira vez que fiz esta ópera em Pesaro, na Academia Rossiniana, foi precisamente com jovens cantores. Quando se aprende uma língua é vantajoso frequentar um nível superior ao nosso porque se trabalha muito mais. O mesmo sucede neste caso.”

Também no caso do São Carlos os solistas são bastante jovens. Luís Rodrigues, que faz o papel de Don Profondo, “um homem com posses e cultura que é fanático das antiguidades um bocadinho lunático”, refere que é gratificante trabalhar com tantos jovens cantores portugueses e elogia o nível das três sopranos principais. “Apesar de não me considerar velho, acabo por ser o mais velho do elenco, o que coincide com a personagem.” Rodrigues não conhecia esta ópera mas foi uma agradável surpresa. “Tem um ambiente muito canoro, é quase uma coisa para atletas do canto.” Confessa porém que ficou “um bocadinho assustado” quando ouviu a ária de Don Profondo do 2º acto, pois é “um verdadeiro tour de force.” “É complicada até para decorar e eu não sou propriamente um cantor rossiniano de coloratura. Mas é uma coisa para buffo [cómico] e nesse campo sinto-me cada vez mais à-vontade, tento usar os meus dotes de comediante!”

Cristiana Oliveira, que tem aqui o seu primeiro papel rossiniano, é Madame Cortese, a dona do spa. “Não é um daqueles papéis virtuosísticos típicos de Rossini, é um bocadinho mais lírico, mas retrata uma figuramuito divertida que faz a ligação entre as outras personagens”, explica. “A ária inicial, quando Madame Cortese pede aos funcionários do spa para atenderem os clientes, descreve os tiques das personagens e o que é preciso fazer para lhe agradar. Musicalmente, o grande desafio é a parte mais rápida, em que descreve todas as personagens ao mesmo tempo que está a dar ordens.”

Eduarda Melo, que faz de Corinna, a poetisa (um papel interpretado na estreia oitocentista pela mítica Giuditta Pasta), compara esta ópera a um desfile de virtuosos. “É como se os cantores estivessem numa arena ou num concurso.” Por coincidência, esta temporada já fez vários papéis rossinianos (Elvira de L’Italiana in Algheri em Marsellha, Rosina do Barbeiro de Sevilha em Lille, e uma das irmãs em La Cenerentola em Metz),  mas nenhum se assemelha a Corinna. “Tem duas partes distintas, uma muito ‘bel cantista’ em que canta as árias acompanhadas pela harpa com textos muito poéticos e depois um dueto muito rossiniano com o Cavaleiro Belfiore. O carácter da personagem vai mudando, no início está a divagar no seu quarto sobre a sua poesia, quando se depara com  Belfiore mostra a sua qualidade humana e na ária final, que é quase cuma homenagem ao novo rei, passamos do imaginário da ópera para a realidade.”

Trata-se de uma personagem bem contrastante com a Condessa de Folleville, interpretada por Carla Caramujo. “Visto a pele da coquete francesa, exagerada em tudo quanto é gesto e  expressões, sempre com alguma elegância, mas com um surto de exagero e mesmo de loucura”, conta a soprano. “Mas dentro desse exagero é preciso pensar no virtuosismo do canto. A ária é longuíssima e extremamente virtuosa, muito aguda, é preciso um controlo muito grande. A música de Rossini vive muito de variações e ornamentos próprios. Tentei trazer as minhas propostas, mas depois cheguei a um acordo coma  maestrina.” Carla Caramujo considera Il Viaggio a Reims uma obra fantástica. “É champanhe do princípio ao fim! Acho que pode agradar imenso ao público. Sobretudo nesta altura de Inverno e em que só se fala da crise as pessoas querem ouvir alguma coisa divertida, borbulhante, de que se possam rir.”