O Quarteirão das Cardosas e os valores do património

A demolição de edifícios com valor histórico e cultural, agora substituídos por construções novas, ou o esventramento de outros para fins de fachadismo, são sinónimos de um modelo de “reabilitação” avesso ao envolvimento das populações (num centro histórico cada vez mais despovoado, mas progressivamente “gentrificado”) e orientado em função de interesses imobiliários, que assim vão ditando um novo modelo de cidade, ao arrepio dos princípios da teoria da conservação inscritos em documentos normativos internacionais, dos quais Portugal é co-signatário.

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A demolição de edifícios com valor histórico e cultural, agora substituídos por construções novas, ou o esventramento de outros para fins de fachadismo, são sinónimos de um modelo de “reabilitação” avesso ao envolvimento das populações (num centro histórico cada vez mais despovoado, mas progressivamente “gentrificado”) e orientado em função de interesses imobiliários, que assim vão ditando um novo modelo de cidade, ao arrepio dos princípios da teoria da conservação inscritos em documentos normativos internacionais, dos quais Portugal é co-signatário.

Demolir património classificado do Centro Histórico que ostenta a categoria de Património da Humanidade, numa cidade outrora pioneira no arranque da reabilitação de centros históricos em Portugal, através da experiência do CRUARB, mas hoje particularmente afectada pela crise, é condenável tanto do ponto de vista patrimonial, como pelo que acarreta em termos de exclusão social, ao favorecer a destruição do tecido social e das relações económicas (com destaque para o comércio tradicional, tão marcante na história da cidade) pré-existentes, obliterando a História e as marcas identitárias que são referência de actuais e futuras gerações.

O património pode e deve ser factor de desenvolvimento e bem-estar para as populações que o herdaram e/ou produziram e que com ele se identificam. É possível e desejável conciliar valores de memória (antigo) com os de novo (uso), tal como Riegl os definiu, sem que para isso seja necessário lançar mão de operações de desfiguração com custos imorais.

A intervenção no património histórico ao abrigo de slogans que usurpam a essência do que deveria ser a boa preservação patrimonial, para aplacar consciências mais sensíveis – “construímos hoje o património do futuro” – contradiz e inverte todas as conquistas alcançadas nos últimos 20 anos, quer no âmbito académico, evidenciado pelo número de cursos de Conservação e Reabilitação Arquitectónica (onde pontuam a FAUP e a FEUP) e da Conservação e Restauro e Estudos do Património (onde a Escola das Artes da UCP se destaca na zona norte), quer no profissional, tal como o comprovam o aumento exponencial de técnicos qualificados e agremiações profissionais.

A preservação do Património Urbano depende mais do que nunca de soluções sustentáveis que passem pela promoção dos valores históricos e artísticos associados ao edificado, idealmente apoiadas em actividades económicas que integrem as populações no respectivo território, que excluam cenários pré-fabricados para turista ver.

A autora é docente da Escola das Artes – Arte e Restauro, da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e membro do ICOMOS Portugal - Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios