E Donald Rumsfeld escapou-se como o gato de Alice

Com uma entrevista ao secretário da defesa norte-americano da administração Bush – homem do Afeganistão e do Iraque, homem de Guantánamo e de Abu Ghraib – o cineasta Errol Morris veio à competição de Veneza. E deixou fugir o seu entrevistado. É mesmo assim, diz ele.

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Ao primeiro, secretário da Defesa nas administrações de John Kennedy e Lyndon Johnson, o “arquitecto” da guerra do Vietname, o documentarista americano tirou o retrato em Fog of War (Óscar do documentário em 2003). O segundo, secretário da Defesa de Gerald Ford (1975-1977) e George W. Bush (2001-2006) – ou seja, homem determinante na decisão americana de intervir no Afeganistão e no Iraque -, é entrevistado em The Unknown Known, presença de Morris na competição de Veneza.

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Ao primeiro, secretário da Defesa nas administrações de John Kennedy e Lyndon Johnson, o “arquitecto” da guerra do Vietname, o documentarista americano tirou o retrato em Fog of War (Óscar do documentário em 2003). O segundo, secretário da Defesa de Gerald Ford (1975-1977) e George W. Bush (2001-2006) – ou seja, homem determinante na decisão americana de intervir no Afeganistão e no Iraque -, é entrevistado em The Unknown Known, presença de Morris na competição de Veneza.

As comparações entre os dois foram logo instantâneas, e o cineasta estava já preparado para citar a mulher que, segundo ele, é o génio lá de casa. Eram perguntas – conferência de imprensa a seguir à projecção – que denotavam uma espécie de espanto: se calhar por um filme-entrevista estar em competição no festival, mais certamente por parecer não haver interesse jornalístico no resultado do encontro entre Morris e Rumsfeld: não há novidades bombásticas que se revelam, o homem nem sequer ameaça com qualquer acto de contrição (McNamara, esse chorava em Fog of War), antes se reafirma e se evade a seu bel-prazer quando Abu Ghraib ou Guantánamo são trazidos para a mesa. Como, para resumir e explicitar uma dúvida que ficou a pairar o ar, se Morris não tivesse feito o seu trabalho “de jornalista”, que seria incomodar o entrevistado com “penetrantes” perguntas para destruir, por exemplo, as máximas e as generalizações que Rumsfeld parece inventar para criar o efeito de uma justificação.

O que está em causa, afinal, na sensação deixada por The Unknown Known é que o modelo de “filme político” que a perspectiva de uma entrevista com Donald Rumsfeld pode alimentar – e que, nesse modelo, deveria até ser idealmente completada com as opiniões ou o olhar de terceiros sobre o entrevistado - não funciona com Errol Morris. Que não se reconhece nele.

Como ele também disse, Donald Rumsfeld é a “quintessência das personagens de Errol Morris”; e até o é mais do que Robert McNamara, acrescentamos nós: personagens que parecem estar em fuga delas próprias, imunes às suas próprias contradições, criando o seu mundo que permanece imperscrutável; veja-se, por exemplo, toda a série televisiva First Person: Rumsfeld é uma incógnita, tal como como a noiva do serial killer, o promotor da imortalidade criogénica ou o homem que alegadamente tem o maior QI do mundo…

E como acontece com eles, também Morris cria uma espécie de tempestade audiovisual expressionista em redor de Rumsfeld - flocos de neve a cair, porque era esse o nome por que eram conhecidos os inúmeros memorandos que enviava ao seu staff; ou imagens da linha de água, serena e perturbante, para Morris a metáfora do desconhecido e da ambiguidade.

O que lhe interessa é capturar um retratado, figura que estará sempre em contradição – nesse sentido, os filmes de Morris são filmes sobre a arte da fuga. O que lhe interessa é possibilitar o espectáculo que é a pergunta voltar incessante, “quem é este tipo, afinal?”, ou “será que ele acredita no que está a dizer?”. E a resposta ser como o sorriso do gato de Alice.