Os dez anos de dois tipos chamados Dead Combo

Os Dead Combo celebram uma década de carreira com um concerto esta noite no Teatro São Luiz, em Lisboa

Fotogaleria

O preto e branco e o traço das personagens, cigarro pendendo dos lábios do homem alto de sobretudo, cartola sobre as olheiras do mais baixo, os dois comicamente soturnos enquanto correm entre cidades, dentro das cidades, de contrabaixo e guitarra às costas sentados à mesa de um bar. O preto e branco e o traço das personagens, aliados aos cenários, sempre nocturnos e fumarentos (com um gato preto como presença constante), dá a estas tiras de BD um ar de fantasmagoria. Mas fantasmagoria realista: porque aqueles dois, o alto contrabaixista e o guitarrista de cartola, que são Pedro Gonçalves e Tó Trips, que são os Dead Combo, surgem ora no metro, atrasados para uma sessão de rádio, em correria em filmagens com Edgar Pêra, à porta da Galeria Zé dos Bois, às 3 da manhã e sem chave para nela entrarem.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O preto e branco e o traço das personagens, cigarro pendendo dos lábios do homem alto de sobretudo, cartola sobre as olheiras do mais baixo, os dois comicamente soturnos enquanto correm entre cidades, dentro das cidades, de contrabaixo e guitarra às costas sentados à mesa de um bar. O preto e branco e o traço das personagens, aliados aos cenários, sempre nocturnos e fumarentos (com um gato preto como presença constante), dá a estas tiras de BD um ar de fantasmagoria. Mas fantasmagoria realista: porque aqueles dois, o alto contrabaixista e o guitarrista de cartola, que são Pedro Gonçalves e Tó Trips, que são os Dead Combo, surgem ora no metro, atrasados para uma sessão de rádio, em correria em filmagens com Edgar Pêra, à porta da Galeria Zé dos Bois, às 3 da manhã e sem chave para nela entrarem.

Ou seja, nisto que descrevemos, Soundfiles, o álbum de BD (desenhos de Tó Trips, texto de Pedro Gonçalves) que a Chiado Editora lançou este mês, encontramos não a música, mas o espírito que anima a música que o duo vem fazendo desde há muito. Há muito? “No dia 31 de Março de 2003, dois tipos encontraram-se num concerto. Depois dessa noite resolveram formar uma banda. O resto são histórias!” Assim se introduz o livro.

Março de 2003. 10 anos de Dead Combo, que a banda de Lusitânia Playboys e Lisboa Mulata celebrará logo à noite com um concerto no Teatro São Luiz, esgotado há cerca de uma semana e marcado para as 21h. Um concerto sem os muitos convidados habituais neste tipo de celebrações. “O Tó estava no outro dia a responder a quem nos perguntava porque não tínhamos convidados: ‘Quem faz anos somos nós!’”, conta Pedro Gonçalves. “E é isso. Somos aqueles dois gajos que vão convidando uma data de malta para participar numa série de coisas, em discos ou em espectáculos, mas os Dead Combo são aqueles dois”. 

Conheceram-se a 31 de Março de 2003, no final de um concerto Howe Gelb, e combinaram experimentar qualquer coisa juntos. Um, Tó Trips, homem de carreira feita no rock mais visceral, nos Lulu Blind ou nos Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre; outro, Pedro Gonçalves, músico dos caminhos do jazz. O que descobriram juntos, música instrumental em que ecos dos trinados de Paredes e ambientes de Morricone, em que as viagens em guitarra de Marc Ribot e o calor do tango de Piazzola se cruzavam numa viela lisboeta, tornar-se-ia parte imprescindível da história musical portuguesa da última década. Para os dois, tornar-se-ia mais que isso. Uma extensão determinante da sua personalidade (musical ou não). Uma biografia de vida, indefinida entre a ficção e a realidade. “Foi gradual. Fomos tocando e tocando e chegámos à conclusão que isto é a coisa mais importante que temos”.

Tocando e tocando: desde a composição de um tema em homenagem a Carlos Paredes no álbum de homenagem Movimentos Perpétuos, seguido do primeiro álbum, Vol. 1, editado em 2004, seguido de Vol. II – Quando a Alma Não é Pequena (2006), seguido do entusiasmo crescente que a música foi gerando cá dentro e lá fora (a BBC, por exemplo, esteve atenta desde o início), os Dead Combo são uma banda em viagem constante. Primeiro, eram como que dois forasteiros misteriosos agindo na sombra. Foram-se dando a conhecer, tornaram-se os bons sacanas de Lusitânia Playboys, o terceiro álbum (2008), espalhando charme entre o Cais do Sodré e o convés de um navio em direcção ao México. Montaram uma Royal Orquestra das Caveiras, tocaram Inquietação, de José Mário Branco, com Camané, cumpriram o sonho de ter Marc Ribot num disco – aconteceu no último Lisboa Mulata (2011). Muito aconteceu nestes dez anos que não parecem dez anos. “Não é uma coisa em que um gajo pense”, desabafa Pedro Gonçalves.

Os Dead Combo são músicos de acção e intuição. “A malta pensar no que faz é uma coisa muito rara. Tocamos para desbravar caminho, nem sequer falamos. Se quiséssemos pensar íamos beber umas cervejas ao sol. Pensamos depois. Em arranjar unidade entre as músicas, em arranjar-lhes nomes e em arranjar justificativos de histórias para as músicas”. Temas como Eléctrica cadente, O assobio (canção do avô), Canção do trabalho D.C. ou Estendal na Afurada, destituídos de canto mas com todo o discurso necessário. Uma visão musical que, com centro espiritual em Lisboa, tudo acolhe – as Américas, o Mediterrâneo, África. Pedro Gonçalves cita Tó Trips: “‘Somos como aqueles navios que passam ao largo das cidades mas que nunca atracam’”. O contrabaixista explica a analogia: “Vemos uma imagem geral das coisas. Ouvimos, mas nunca aprofundamos muito, não vamos estudar as harmonias ou os ritmos. Apropriamo-nos daquilo, mas quando o fazemos, [a música] deixa de ser o que era e passa a ser o que somos”.

Dez anos então. E um concerto para celebrar. “Encaramos isto como uma grande festarola, mas sem churrasco ou pipocas – ainda que ficasse bem se houvesse.” Para trás fica, por exemplo, um ano de 2012 “muito marcante”: “houve o concerto com o Marc Ribot em [Festival de Músicas do Mundo de] Sines que foi mágico, o realizar de um sonho de sempre. Houve Paredes de Coura que foi incrível”. Houve o continuar das viagens mundo fora, mais frequentes desde que levaram o célebre Anthony Bourdain a comer ao Cais do Sodré no último episódio lisboeta de No Reservations – as vendas dispararam lá fora depois da emissão. E há, agora que são já um nome imprescindível no actual panorama português – é quase estranho pensar que houve um tempo em que a música deles não nos acompanhava, tal a sua familiaridade -, um futuro sempre em aberto.

Não precisam de falar. Basta tocar para desbravar caminho. “A não ser algum de nós cair para o lado, não vejo nada que nos faça parar”. Pois que continuem.