Sundance, a Disneylândia do sexo e da vida real

O festival-chave do cinema independente americano chega ao fim depois de uma edição onde o sexo e o estado da América estiveram na mó de cima e até houve ovnis filmados na Disneylândia

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Amanda Seyfried, a ingénua de "Mamma Mia" e "Os Miseráveis", em Sundance, onde se apresentou no papel de Linda Lovelace, a heroína do mítico porno "Garganta Funda" REUTERS/Mario Anzuoni

Quase se diria: só Hollywood seria capaz de fazer um filme biográfico sobre uma mulher cujo momento de notoriedade criou uma lenda e a destruiu ao mesmo tempo.

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Quase se diria: só Hollywood seria capaz de fazer um filme biográfico sobre uma mulher cujo momento de notoriedade criou uma lenda e a destruiu ao mesmo tempo.

Mas isto não é bem Hollywood: isto é o festival de Sundance, ponto de encontro da produção americana feita fora do alcance dos grandes estúdios, que termina domingo, 27 de Janeiro.

Foi na estância de esqui de Park City, no Utah, a escassas centenas de quilómetros de Salt Lake City, que Lovelace, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman (autores do documentário O Cinema no Armário e da adaptação de Allen Ginsberg Uivo), teve a sua estreia esta semana, perante uma audiência bastante aprovadora.

Mesmo Naomi Wolf, que ainda há pouco comparara Kathryn Bigelow a Leni Riefenstahl por 00.30 a Hora Negra, saiu (no Guardian) em defesa do filme, embora lhe aponte programaticamente algumas falhas ideológicas.

Lovelace, que terá a sua estreia europeia a concurso daqui a poucas semanas no festival de Berlim, é no entanto apenas a “ponta do icebergue” de uma série de filmes “ousados” na programação 2013 do festival. O mais polémico terá sido Interior. Leather Bar., média-metragem quase experimental onde James Franco e Travis Matthews reconstituem cenas perdidas do polémico policial de William Friedkin A Caça.

Como quase tudo em que Franco, verdadeiro “homem da Renascença” que está constantemente a forçar os limites da celebridade, se mete, Interior. Leather Bar. dividiu opiniões; excepto no que diz respeito ao seu potencial comercial (é um filme-ensaio sobre a celebridade e a representação com 60 minutos de duração, logo com existência restrita a festivais).

Mas houve também Don Jon's Addiction, a estreia na realização do actor Joseph Gordon-Levitt, sobre um pinga-amor de Nova Jérsia viciado em pornografia e a sua relação com duas mulheres que podem mudar a sua vida (Scarlett Johansson e Julianne Moore).

Two Mothers, onde a francesa Anne Fontaine põe Naomi Watts e Robin Wright a terem affaires com os filhos adolescentes uma da outra, arrancou gargalhadas sonoras de uma audiência incrédula com o que estava a ver (levando a realizadora a dizer que “não sabia que tinha feito uma comédia”). E o prolífero Michael Winterbottom mostrou The Look of Love, a história verídica de Paul Raymond, magnata britânico da indústria erótica, que (como já é hábito na produção do realizador inglês) não convenceu muitos.

No entanto, a percentagem de histórias verídicas entre estas obras sobre sexo (às quais se deve juntar o documentário de Christina Voros Kink, sobre uma companhia produtora de pornografia fetichista em São Francisco) reflectiu em micro-cosmos o programa de Sundance 2013, onde as ficcionalizações, adaptações e registos documentais de casos reais dominaram.

Duas das ficções mais aclamadas a concurso referem-se a momentos marcantes recentes da história social americana. Fruitvale, de Ryan Coogler, produzido por Forest Whitaker, acompanha o último dia da vida de Oscar Grant, morto por um polícia nos transportes suburbanos de Oakland na véspera de Ano Novo de 2008 – comprado quase imediatamente pelos irmãos Weinstein, está já na calha para ser um dos “indies” do ano.

E Blue Caprice, de Alexandre Moors, reporta-se à relação quase de pai e filho entre John Muhammad e Lee Boyd Malvo, assassinos em série responsáveis por dez mortes durante Outubro de 2002 nos estados da Virgínia e do Maryland e em Washington.

A “geração Beat” esteve também representada com dois filmes que a quase totalidade dos observadores consideraram superiores à recente adaptação de Pela Estrada Fora por Walter Salles. Michael Polish, o autor de Twin Falls Idaho e Southfork, trouxe Big Sur, filmando a obra homónima de Jack Kerouac com Jean-Marc Barr no papel do escritor. John Krokidas mostrou Kill Your Darlings, baseado num crime que teve lugar em 1944 no meio onde Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs se moviam. O elenco de luxo tem Daniel Radcliffe (sim, Harry Potter) como Ginsberg, Ben Foster como Burroughs e ainda Elizabeth Olsen, Jennifer Jason Leigh e Michael “Dexter” C. Hall.

Quanto à presença documental em Sundance esteve, este ano, particularmente atenta ao estado da nação americana. Alex Gibney mostrou We Steal Secrets, sobre Julian Assange, a Wikileaks e Bradley Manning, o militar que facilitou a publicação de documentos militares secretos; Frieda Mock trouxe Anita, sobre Anita Hill, a mulher que acusou o juíz do Supremo Tribunal americano Clarence Thomas de assédio sexual; Inequality for All, de Jacob Kornbluth, vê o notado economista Robert Reich discutir a disparidade económica na América moderna.

Os “botões emocionais”, contudo, foram explorados por dois outros documentários: A Punk Prayer, de Mike Lerner e Maxim Pozdorovkin, sobre a história da controversa banda punk activista Pussy Riot, e Blackfish, de Gabriela Cowperthwaite, sobre os acidentes que tiveram lugar com orcas em cativeiro.

Sundance não seria Sundance sem os OVNIs que o festival ainda é capaz de descobrir. Rodado em 3D, Charlie Victor Romeo, de Robert Berger e Karyn Michelson, reconstitui num cenário desnudado seis episódios de acidentes de aviação vistos do cockpit, numa adaptação de uma aclamada produção teatral off-Broadway que reproduz fielmente os registos das “caixas negras” desses acidentes.

Mas, se já se esperava que Upstream Color, o regresso de Shane Carruth dez anos depois do culto confidencial que é a ficção-científica Primer, deixasse audiências de boca aberta (e deixou, levando a críticas tão deslumbradas como intrigadas quanto à inexplicabilidade da sua trama), o tapete de OVNI foi-lhe tirado debaixo dos pés pelo estreante Randy Moore.

O seu Escape from Tomorrow tornou-se no mais falado de todos os filmes a concurso antes ainda da sua revelação, por ter sido rodado inteiramente durante uma série de visitas à Disneylândia, sem conhecimento nem autorização da gerência. E Moore utiliza as imagens rodadas, a preto e branco, para construir a história de um pai de família que se deixa levar pela paranóia e pelo medo durante uma visita ao parque durante a qual parece entrever uma realidade alternativa.

As críticas não foram muito favoráveis, apesar da ousadia do tema, e o estatuto de filme “fora da lei” levanta sérias dúvidas quanto a uma possível estreia, mas por essa altura já Escape from Tomorrow se tornara no caso do festival. Ofuscando até Before Midnight, o regresso de Richard Linklater, Julie Delpy e Ethan Hawke às personagens de Jesse e Celine lançadas em Antes do Amanhecer, que terá tido a mais extática reacção por parte de públicos e críticos.

Mas Sundance é assim: uma caixinha de surpresas da qual nunca se sabe muito bem o que vai sair. O ano passado, o festival revelou Bestas do Sul Selvagem, este ano nomeado para quatro Óscares. Este ano? Logo se verá.