Leos Carax. Renascido das cinzas renascido das cinzas

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Em Holy Motors o cinema volta a ser o motor, e a vida e a experiência o combustível JEAN-PAUL PELISSIER/ REUTERS

Retrato de um homem que acende os cigarros uns nos outros, mais ou menos a cada sete palavras. É um fabricante de imagens que transportam consigo a lembrança dos vencidos. E geram uma beleza tóxica que brilha até na sombra da morte.

Leos Carax fuma. Ao tragar o fumo dos cigarros que acende uns nos outros, mais ou menos a cada sete palavras, não treme, mas vêem-se as veias das têmporas latejar. Os óculos escuros que usa sempre não deixam ver se lhe custa falar em tom cordial e não demasiado baixo. Seja como for, tirou o chapéu.

Foi a 3 de Agosto, no festival de Locarno, no 73.º dia após a estreia de Holy Motors em Cannes, que realmente vi Carax de perto. Não que isto se assemelhe a uma revelação religiosa ou que a contagem da nossa era tenha de se reiniciar a partir de Holy Motors. Mas é muito, muito raro vê-lo. E nunca se sabe daí a quanto tempo voltará a desaparecer do nosso horizonte Leos Carax, cujo nome verdadeiro é Alexandre Oscar Dupont, mas que ele mudou logo aos 13 anos para um anagrama dos seus nomes próprios.

Carax fez imagem de marca de ser visto e ouvido o mais raramente possível: não há fotos nem entrevistas, nem aparições na televisão ou na rádio. Será que existe mesmo? Desde o início que a aura de Carax foi construída entre o brilhantismo dos seus filmes e a sua presença incorpórea no mundo. Como Thomas Pynchon ou Terrence Malick, este afastamento dos media transformou-o num enigma. E não lho podemos levar a mal, pois é genuína a frustração com os seus fracassos que volta e meia o atinge, como aconteceu pela última vez em 1999, com Pola X.

"Para mim, falar de cinema é um pequeno pesadelo", dirá no decurso de uma conferência de imprensa em Locarno - e, não obstante, fá-lo-á durante mais de uma hora. "E falar de cinema à luz do dia é um grande pesadelo. O cinema é uma coisa da noite. O cinema ama a noite, tal como eu."

Como após um eclipse de 13 anos, portanto, o novo filme de Carax veio sacudir público e crítica e confirmou o regresso deste filho pródigo que o cinema francês gerou na década de 80. A importância de que os seus filmes se revestem é difícil de avaliar, e não é fácil encontrar uma perspectiva, um ângulo que se lhe adeque. "Só não me chamem cinéfilo, por favor", diz de repente. "Não me vejo a mim próprio como cinéfilo. Apenas vi muitos filmes quando era jovem. Descobri o cinema ao mesmo tempo que comecei a fazer filmes, entre os 16 e os 25 anos. Via o que calhava: cinema mudo, cinema americano, cinema russo, Nova Vaga. E penso que os meus dois primeiros filmes foram muito influenciados por isso. Por assim dizer, eles foram o meu tributo a essa experiência."

Holy Motors parece voltar a seguir essa linha. Aqui, o cinema volta a ser o motor, e a vida e a experiência, o combustível. Carax cita Henry James e Robert Musil, e letras de todos os seus filmes (Barbara, Manset, Bowie). As palavras são sempre muito importantes para as suas imagens. "O cinema funciona como linguagem", nota. "Muitas pessoas não dispensam as referências quando falam deste filme. Quando a linguagem de um filme é o próprio cinema, as pessoas ficam confusas, pois nem todas estão dispostas a aventurar-se sem saber onde irão parar no minuto seguinte."

A relação entre Carax e o seu público não é de amor. Mais: "Não sei o que é o público. Não o conheço. Creio, porém, que se tornou mais impaciente. Talvez isso tenha a ver com as séries de televisão americanas ou com certos filmes que só trabalham dentro de determinados limites. Mas não sei muito sobre o estado do cinema."

Alguma coisa se avançou, sobretudo no que diz respeito à técnica. Carax não esconde que não desejou a digitalização, mas aceita-a, naturalmente: "Quando comecei a realizar filmes, ainda havia câmaras a motor, e filmei com uma Mitchell, a maior e também a mais bonita. Quando na altura se via um travelling - como em Murnau, quando se segue um homem ao nascer do dia -, tinha-se a sensação, só pelo peso da câmara que tinha de se carregar, de fazer também esse mesmo travelling. Tornava-se um travelling por força do humanamente possível. Agora é preciso produzir artificialmente essa sensação, é esse o verdadeiro trabalho - e tarefa -, hoje. Venderam-nos o digital um pouco como quem vende um medicamento que não sabemos que doença cura. Mas eu próprio rodei os meus últimos filmes com câmaras mais pequenas que a minha cabeça. Estes objectos fazem-nos sentir muito menos poderosos."

Uma bomba de juventude

Quando em 1984 fez o seu primeiro filme, Boy Meets Girl, já tinha realizado uma curta de culto, Strangulation Blues. E já chamara a atenção dos críticos Serge Daney e Serge Toubiana que escreviam sobre ele nos Cahiers du Cinéma, onde Carax também fez crítica. Visto de hoje, este princípio parece ter acontecido na Idade da Pedra: não havia Internet nem telemóveis, e o mundo acabava de se unir sob a égide de um novo canal televisivo dedicado à música, a MTV. O ano de 1984 foi também aquele em que morreu François Truffaut e o cinema francês voltou a correr o perigo de se cristalizar - não fosse estarem no activo Godard, Pialat, Garrel ou Téchiné.

Neste contexto, Boy Meets Girl caiu como uma bomba de juventude e frescura. Com um preto e branco enevoado, o seu olhar poético sobre Paris e uma redefinição subtil do eterno padrão do encontro amoroso, este filme respirava o presente através dos rostos e dos corpos dos seus intérpretes. Foi a primeira colaboração entre Carax e o actor Denis Lavant, que já aqui mostrou o seu físico atlético, a sua expressão carrancuda e o seu cabelo preto, usado como um capacete.

"Não conheço o Denis como pessoa", diz sobre ele Carax, depois de o actor ter entrado em quase todos os seus filmes. "Fizemos cinco filmes juntos, somos praticamente da mesma idade e temos uma estatura semelhante, mas não posso dizer muito mais. Descobri-o por uma fotografia, tinha ele uns 22 anos, e pu-lo à frente de uma câmara. Na altura, a rodagem já estava atrasada cerca de um ano, em parte porque eu não conseguia encontrar um rapaz que se adequasse ao papel. Começava a pensar que nunca iria conseguir fazer um filme. Quando vi o Denis, percebi que ele era único do ponto de vista físico. Mas ele não confiou em mim. Após a rodagem, também fiquei com a sensação de que o utilizara pouco. O filme não tinha sido feito para ele. Ele entrou num comboio que já estava em andamento. A partir dai, porém, fiz os filmes à medida do Denis, para que ele pudesse ser sempre dez vezes o que é. Como actor, podia pedir-lhe quase tudo, e ele correspondia. Com o Denis Lavant, sentia-me sempre um pouco como o Tex Avery. Depois, quando fiz Merde, vi que ele também podia representar coisas que nunca lhe tinha pedido: um velho a morrer, um pai de família - situações que o próprio Denis não conhece. Nunca jantámos juntos sequer, não somos amigos. Mas foi indispensável para todos os filmes que fiz com ele."

Em 1986, conseguiu consolidar o seu estatuto de novo pequeno génio do cinema francês. Má Raça é um Boy Meets Girl a cores, com mais recursos, com actores conhecidos (Piccoli), uma estrela em ascensão (Juliette Binoche) e outra vez Denis Lavant, sempre um alter ego. Em jeito de filme negro, Carax evoca aqui os anos da sida com virtuosismo visual e uma sofisticação ofuscante. Os seus planos gerais ficam gravados na memória: um salto de pára-quedas e a dança de Alex

Lavant ao som de Modern Love de David Bowie transformam-se em momentos inesquecíveis.

Carax é um fabricante de imagens que - diga ele o que disser - transportam consigo a melancolia de um cineasta que, com os seus filmes, mantém viva a lembrança dos vencidos. E elas geram uma beleza tóxica que brilha até na sombra da morte.

Coragem lírica

Hoje continua a ser notável como o então jovem Carax já conseguia ver o tempo em que vivia com suficiente distanciamento. "Não consigo recordar-me como o fiz", diz - e talvez também porque tudo na sua atitude faz lembrar uma frágil corça assustada, sempre alerta e prestes a entrar em fuga, o chapéu pousado em cima da mesa, ao alcance da mão, as suas palavras parecem ser genuínas e não soam a afectação.

"Eu descobri o cinema com o sentimento de ter encontrado nele a minha ilha, uma ilha rodeada de muita água, para não ser fácil alcançá-la. No dia-a-dia, muitas vezes, é difícil ver as coisas. Quando se está na ilha, vê-se melhor, como com um espelho convexo. Além disso, o cinema foi sempre a única área em que me senti seguro do meu gosto. Não me sinto seguro diante de um quadro. Se a minha namorada me diz, "Isto é fabuloso", eu respondo-lhe, "Ah, sim", só porque não faço a mínima ideia. Mas no cinema estou à vontade. Não estou de acordo quando as pessoas dizem que os filmes são sonhos. Não, não acho que os filmes sejam sonhos. A experiência do visionamento é um sonho. Por isso é difícil definir o cinema. Estamos sentados no escuro, rodeados de pessoas que não conhecemos, e por trás de nós está aquela máquina enorme que projecta algo que é muito maior do que nós. Esta experiência pode assemelhar-se a um sonho, mas a realização não. Pelo contrário: eu fiquei felicíssimo por ter encontrado no cinema um mundo em que podia viver."

Entre 1988 e 1991, a experiência cinematográfica de Carax tornou-se ainda mais mística e resultou no filme Os Amantes de Pont-Neuf, um conto de fadas acerca do amor entre um sem-abrigo (Lavant) e uma pintora cega (Binoche) sob as pontes de Paris - de certa forma, a obra de um artista ultra-romântico que se sente incompreendido, acredita na omnipotência do cinema e quer demonstrar a sua magia.

Logo no início da rodagem, Lavant lesionou uma mão, o que provocou um atraso nos planos. Depois, a equipa não conseguiu obter autorização para filmar nas pontes de Paris e Carax teve de optar por reproduzir o cenário nos arredores de Montpellier. Como se os azares não bastassem, uma tempestade destruiu o cenário... Os atrasos aumentaram enormemente os custos de produção e o filme acabou por entrar na história do cinema francês como o seu fracasso mais caro. Para Carax, a consequência lógica foram oito anos de retiro, apenas interrompidos por papéis em filmes de Philippe Garrel ou Sharunas Bartas.

Mas também Pola X, de 1999, não foi um êxito. Um filme de grande ambição que falava de guerra, de revolução social e dos limites da Europa - que na altura foi incompreendido, mas está agora a ser redescoberto. Carax fê-lo demasiado cedo?

"Os meus filmes não têm medo do escárnio", diz Carax, 13 anos depois. "Talvez por isso haja quem os ache grotescos. Mas quando se quer criar alguma coisa tem de se ir contra alguma coisa, acho, tem de se tentar o impossível. É por isso que acho que vivi os piores e os melhores momentos da minha vida a filmar. Por um lado, podemos sentir-nos como um peixe fora de água - e isso acontece muitas vezes. Eu não estudei cinema, e ninguém acredita em nós quando começamos. Mas esse sentimento também é enriquecedor, e permanece sempre comigo, ainda hoje. Tendo em conta que faço poucos filmes, tenho sempre a sensação, ao iniciar uma rodagem, de que os elementos da equipa olham para mim e pensam: "Este tipo já não filma há muito tempo... o que irá sair daqui?" Mas acho por bem encarar cada filme como o primeiro e o último. Talvez seja preciso ter coragem para isso, mas coragem temos todos muito pouca, o que me preocupa. E aqui não estou a falar só de cinema, mas de coragem física. De coragem civil. De coragem lírica. Devíamos ter aulas de coragem na escola. O certo é que o mundo virtual não ajuda a criar coragem. Aquilo a que chamamos redes não são redes de resistência, mas sim redes de cumplicidade. As pessoas sentem-se muito bem, assim escondidas, mas na verdade são muito pequeninas."

O invisível

Carax como corajoso lutador contra um mundo virtual? Não por acaso, em Holy Motors as limusinas têm personalidade. Sonham, cansam-se e vão dormir na garagem mais triste e mais bonita da história do cinema. Um apelo a uma terra natal concreta em tempos de realidades indistintas? "Pessoalmente, gosto do invisível", esclarece. "Mas o virtual é só uma má versão do invisível. O invisível é habitado, ao passo que o virtual é como que uma proposta de viver no mundo. Com guerras virtuais, um conceito de nove vidas, a impossibilidade da morte e drones que se podem guiar com telecomandos. As limusinas são locais especiais. São feitas para serem vistas mas, ao mesmo tempo, não se pode ver o que se passa lá dentro. Para mim são, portanto, como uma bolha virtual: está-se lá dentro mas, por isso, fora da vida real. No entanto, as limusinas são máquinas, têm um motor que se pode tocar, como um coração, e isso, para mim, é sagrado. As máquinas têm vida, são ao mesmo tempo eróticas e mórbidas."

Há dez anos que começou a reparar nas limusinas, diz: "Primeiro nos Estados Unidos, a seguir no bairro de Paris onde vivo e depois num casamento na China. Foi uma imagem que me surgiu, não sei como. Mas ainda não pensava neste filme. Não escrevo argumentos enquanto não me vejo forçado a isso. Por dinheiro, pela equipa. Mas faço um filme a partir de duas ou três imagens, de dois ou três sentimentos: depois, essas imagens vão dar a outras. Depois das limusinas, encontrei outra imagem: uma cigana numa ponte de Paris. Ela estava na outra margem, eu não conseguia chegar a ela. Primeiro pensei em fazer um documentário sobre ela, mas tive medo de que isso me levasse a vida inteira. Portanto, transformei essa imagem numa ficção. A velha cigana transformou-se em Denis e aparece uma limusina para o transportar de vida em vida."

Já em 2008, no entanto, o segmento Merde do filme Tokyo!, que realizou com Michel Gondry e Bong Joon-ho como declaração contra o mundo actual e o seu consumismo soez, constituía uma premissa para Holy Motors. Como sempre, Carax ama os marginais, os associais, os monstros, e destila deles uma energia, uma inventiva e um humor que não se imaginaria possível. A primeira sequência de Holy Motors narra, de forma coerente, a história do próprio Carax e do seu passado: Lavant

Carax parece acordar de um sono longo e profundo, num espaço que, como um buraco surreal numa sala de cinema, vai dar ao seu império, no qual ele mergulha cegamente.

Pelo menos, Carax parece ter vencido com este filme a maldição do fracasso, desta vez não como o Ícaro do cinema, que sonha sempre muito alto e acaba por queimar as asas ao aproximar-se demais do seu ideal, mas como a Fénix renascendo das cinzas.

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