Como se nascer fosse uma maldição

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NUNO FERREIRA SANTOS

Jaime Rocha é um discreto e prolífico ficcionista-poeta-dramaturgo. O seu último romance, A Rapariga Sem Carne, é o terceiro volume de uma "Trilogia do Mal": a aventura de um homem só, à procura de uma saída.

Já não é jornalista, mas Jaime Rocha (n. 1949) ainda não consegue desligar-se do real, da notícia. "Todos os sons, os cheiros e os acontecimentos da realidade servem como tijolos para as paredes deste edifício", explica ao Ípsilon. "Isto tem muito a ver com o meu lado de homem de jornais. É uma coisa essencial para mim, ler o jornal, saber o que se passa no quotidiano."

Talvez por isso, cada capítulo deste A Rapariga sem Carne, o mais recente romance de um tríptico a que autor chamou "Trilogia do Mal", comece com essa ponte entre a ficção e o mundo: catástrofes, acidentes, a natureza do mal que nos rodeia. "É a alimentação do mal, o mal incorporado no acaso. A humanidade carrega um mal às costas e tem de aprender a viver com ele. Como se nascer fosse uma maldição. E, na nossa vida, o mal é muito mais forte e recorrente do que o bem."

É um imaginário que persegue o autor, o da tragédia. Talvez venha da infância, na Nazaré: "Vivi sempre dentro do luto, dentro das tragédias: os naufrágios, os mortos, os suicídios, o desaparecimento do corpo. Tudo à minha volta era tragédia, depois compensada com grandes momentos de festa: o Carnaval, a Páscoa, as festas de Verão."

Como as personagens, Jaime Rocha caminha silencioso, observa discreto e atento ao mundo. Tudo fica retido "na memória em imagens e palavras". Depois, prolífico, "uma parte vai para o teatro (a tragédia, a comédia); outra vai para a poesia (mais metafórica), e depois a prosa é uma parte intermédia que está entre a poesia e o teatro." Não, não é assim tão maniqueísta: é "quase orgânico", como se fosse "a cabeça por si a dividir as imagens".

Jaime Rocha diz não estar habituado a falar da sua obra como um todo, ainda que reconheça que ela (ficção, poesia, teatro) bebe num imaginário comum. Talvez por isso surjam tetralogias (a da "Assombração", por exemplo, que, em poesia, juntou Os que vão morrer, Zona de Caça, Lacrimatória e Necrophilia, publicados entre 2000 e 2010). Talvez por isso, ainda, este A Rapariga Sem Carne seja o terceiro (último?) volume de uma trilogia de que fazem parte A Loucura Branca (1990, reedição em 2001) e Anotação do Mal (2007), vencedor do PEN Clube de Ficção em 2008.

Não é fácil explicar os géneros. "O teatro funciona por encomendas. A prosa obrigo-me. A poesia aparece-me." A poesia e a ficção são dois caminhos paralelos: "A minha poesia é muito narrativa, nesse caso há uma aproximação à prosa. Ambas são uma construção literária a partir do real. A prosa parte de um real mais concreto, ao nível dos objectos, das imagens, das ruas, para a reconstrução de um novo universo. Na poesia é mais uma abrangência: há a natureza, o mar, o simbólico. Há paisagem."

Uma espécie de consolo

Tal como nos primeiros volumes da trilogia, neste romance há uma figura masculina principal: "Não sou eu, mas é uma construção minha - um homem só, desestruturado, com um grande vazio interior, à procura de uma saída."

Se, no primeiro livro, o homem tem uma família, está em casa e sai para a rua - há uma busca do lá fora -, já no segundo o mesmo homem está dentro de casa, "e enquanto se tenta suicidar de diversas maneiras e não consegue, olha para a rua, pela janela", construindo assim a vida através do interior. Literalmente anotando o mal comum.

Em A Rapariga Sem Carne, um ser estranho (a rapariga) entra em casa do homem. "Ele está a caminho da loucura, num estado branco, numa espécie de nevoeiro. Nunca se sabe se enlouquece mesmo. Mas não quero que ele enlouqueça, se não perco-o. Mantenho-o sempre num limiar da loucura, numa pré-loucura." O autor controla a sua personagem porque precisa que ela continue neste mundo, deste lado do real: "Ele tem de conseguir comunicar com a rapariga. Se enlouquece, deixa de o poder fazer, e a partir daí eu, autor, perco a linguagem, perco o controlo das palavras." Teria de criar um discurso automático, artificial, "um homem com tiques, como um louco, a bater com a cabeça contra a parede, para lá e para cá". Aí terminaria a literatura - "e começaria o teatro", talvez.

Primeiro há um choque, uma surpresa. O objecto estranho sem nome, sem fala, sem identidade, desmemoriado, "rola" para dentro de casa, como um embrulho. Depois habituamo-nos àquele ser e já não conseguimos viver sem ele: "Ela entra no jogo." No amor também é assim: primeiro, bate o coração, medo, encantamento. Depois, habituação: contrai-se o músculo quando o outro desaparece (como a rapariga que se esconde dentro da arca, preenchendo o mistério). "Eles estão a iniciar uma relação, com tudo o que isso implica, porque ela não tem uma identidade. E se ela tem uma doença grave? E se...? Isto cria-lhe medo, mas ela preenche-lhe o vazio." Nesse jogo é que entram "a sensualidade, o erotismo e uma espécie de cura: cuidar também faz parte do jogo". Contrariamente à Anotação do Mal, que é um jogo de aniquilação, suicidário, "aqui ele quer viver e ela dá-lhe alento". Uma espécie de consolo.

O livro tem uma génese: "Na realidade, também eu tive de cuidar de uma pessoa. Foi isso que fez com que transpusesse essa experiência para a literatura, ao criar esta história, que é uma maneira de me defender, de me tranquilizar."

A rapariga vem "preencher um espaço", uma casa vazia. Mas há aqui a questão do envelhecimento. "Há uma razão para a outra personagem ser uma rapariga. É um corpo jovem que permite criar um recuo no tempo e uma envolvência erótica, sensual, por causa da diferença de idades. É isso que permite o enamoramento, essa tensão erótica, que parte da necessidade de cuidar dela."

Jaime Rocha recebe o Ípsilon no seu bairro, em Benfica, onde mora há mais de 30 anos. Na rua, como no romance, há o cemitério, a florista, o café, a banca dos jornais, a farmácia, o minimercado. Ainda que brilhe o sol e que a cidade esteja cheia de luz, há uma sujidade constante, decomposição. "Há ruína, aqui. Essa ruína vou buscá-la tanto para a poesia, como para o teatro, como para a prosa." É um imaginário muito seu, "é o lado obscuro da cidade, o lado negro, as paredes sujas, os dejectos, as pessoas rejeitadas": "É o que vejo."

O romance é também, por isso, o retrato de um Portugal contemporâneo - e esse bairro um microcosmos do país - em que envelhecimento se tornou sinónimo de empobrecimento: "Esse é o sentimento do autor face ao mundo, como ele olha para a realidade e para a sociedade de hoje; a decadência, a crueldade, o crime, a fome, o desemprego. A realidade é o ruído de fundo nos livros."

Ver crítica de livros pág.25 e segs.

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