O pensamento de Frankfurt

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Nas últimas semanas, tenho dado por mim a pensar que o português mais poderoso do mundo é Vítor Constâncio, o número dois do Banco Central Europeu. Em parte, porque o Banco Central Europeu se tornou durante esta crise na instituição mais importante para a economia global; tudo o resto falhando, é do Banco Central Europeu que se espera a diferença entre o euro colapsar ou não, e haver uma depressão generalizada; e agora espera-se também a supervisão direta dos maiores bancos europeus e indireta de todos os outros. Claro que ser o número dois desta instituição, como Vítor Constâncio é, dá um peso decisivo a tudo o que se disser.

Mas a minha interpretação vai para além destes aspectos práticos. Na falta de pensamento estratégico entre os líderes europeus, têm sido os homens do BCE a traçar os fundamentos ideológicos do que se vai passar a seguir na Europa. Um discurso apresentado por Vítor Constâncio em Berlim, há quase um mês, passou quase despercebido, mas acabei por ver os seus temas repegados nos planos de Barroso, Van Rompuy, e até numa presença de Draghi no Parlamento Europeu há dois dias. Seja porque as ideias são suas, seja porque participa na cultura geral da instituição que marca o atual debate europeu, a verdade é que aquilo que Vítor Constâncio diz tem grandes hipóteses de entrar no senso comum dos eurocratas.

O problema está nesse senso comum. Constâncio tem uma amplitude intelectual maior do que a maior parte dos líderes europeus - o seu discurso começa por evocar Hyman Minsky e acabando citando Dani Rodrik, dois economistas heterodoxos - mas o paradigma em que o seu pensamento funciona acaba por ser absolutamente conformista. E esse conformismo é hoje, para o dizer claramente, antidemocrático.

Vítor Constâncio preconiza a realização de "contratos bilaterais de reforma" com os Estados-membros, que levariam os nossos Governos a terem de se comprometer com programas de reformas estruturais e institucionais em troca de financiamento. Esta ideia já apareceu no plano de Van Rompuy, e apesar de na prática vir a ser pilotada pela Comissão, tem todas as marcas do pensamento de Frankfurt, ou seja, da ousadia com que o Banco Central Europeu começa a ver a sua relação com os Estados.

Para vermos que tipo de reformas constariam desses programas, basta ver a casualidade com que Vítor Constâncio (repetido em Bruxelas por Draghi) se refere aos cortes salariais como "melhorias nos custos unitários de trabalho", e não simplesmente "reduções"; para o pensamento de Frankfurt, baixar é melhorar.

Mas o pior encontra-se nas referências à democracia, que em geral aparecem sempre em fim dos documentos, como se fossem o carro-vassoura nas corridas de ciclismo. Vítor Constâncio dá-se por contente com o facto de que as decisões se darão ao nível supranacional quando as discussões públicas se limitam ao nível nacional. Chama a isto uma "legitimidade de resultados" ou "Governo para o povo". Esquece-se de uma coisa: sem haver antes Governo do povo e pelo povo, não há democracia.

Aqui chegaram os tempos: onde antes se queria que os bancos centrais fossem independentes dos Governos, convive-se agora com a ideia de que os Governos passem a obedecer aos bancos centrais e a outras instituições supranacionais não-eleitas. É o ousado pensamento de Frankfurt.

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