As armas e os crimes da cidade nova

Obama, que já nada tem a perder, pode enfim travar a loucura que confunde armas com liberdade

Na reportagem de Kathleen Gomes que ontem publicámos, uma cidadã de Newtown interrogava-se sobre se não devia haver "mais cuidado com os tipos de armas que as pessoas têm em casa". Mas depois, como se se arrependesse de ter dito aquilo, acrescentou: "Mas não sei como é que se faz isso sem retirar algo que a América sempre foi. Um país livre." Este raciocínio não anda longe dos argumentos dos que dizem que as armas não matam, quem mata são as pessoas; logo, é possível ter armas, várias, porque assassinos sempre houve e haverá e não é privando os cidadãos honestos de andarem armados que se pode evitar que os não-honestos cometam crimes. Tudo isto, como se sabe, assenta na enorme falácia de que armamento é igual a liberdade e que quaisquer restrições ao uso de armas atentariam contra a liberdade. Se assim fosse, os cidadãos comuns podiam ter acesso a armamento pesado, porque não são as armas que matam, são as pessoas. Mas ninguém imagina canhões, mísseis e obuses à venda em supermercados. Por isso, se os americanos continuam presos a uma interpretação discutível da segunda emenda da Constituição (a "well regulated militia" ali garantida é "traduzida" como liberdade para armar todo e qualquer cidadão), ao menos olhem de frente para a monstruosidade que é permitir a compra livre de armas de combate, como aquela que serviu a Adam Lanza para assassinar 26 pessoas no dia 14. Os que argumentam que com uma simples faca aquelas pessoas "estariam mortas na mesma" usam uma demagocia aviltante. Uma arma semi-automática que dispara seis balas por segundo não pode ser comparada a nenhuma faca, por mais afiada que esteja. Se assim é, aliás, experimentem os Estados Unidos enviar os seus soldados para as frentes de batalha por esse mundo armados de facas. Verão o que sucede.

É, no entanto, evidente que a proibição ou restrição de armas não anulam, por si só, a existência de crimes ou criminosos. Mas os limites legais impostos ao uso de armas no quotidiano podem, se bem aplicados, prevenir tais ocorrências. É mais fácil vetar uma arma do que descobrir o que vai no cérebro de um pacato cidadão que em segundos se transforma em criminoso.

Ao falar ontem em Newtown, no lugar onde a cidade velava ainda os seus, Obama evitou falar em armas. Mas foi taxativo ao dizer: "Não podemos tolerar mais isto. Estas tragédias têm de acabar." E ele sabe que, para que algo mude, é preciso que os americanos se disponham também a encarar o direito à legítima defesa com comedimento. Nancy, mãe de Adam, tinha várias armas em casa para estar preparada "para o pior". Afinal, o "pior" sucedeu exactamente por causa dessas mesmas armas. Foi uma delas que a matou, e a mais duas dezenas de inocentes.

As sondagens que entretanto surgem na imprensa americana, feitas no local, dão conta de uma ligeira mudança na opinião pública americana. Mas nada garante que, passado o luto, a febre das armas não se reinstale. Obama, que já nada tem a perder, pode enfim tentar travar esta loucura.

Sugerir correcção