Caetano Veloso dá um "abraçaço" à música como prenda de Natal

Quinze anos depois do muito elogiado “Livro”, Caetano Veloso volta a assinar uma obra-prima. “Abraçaço”, assim se chama o disco, chega hoje ao mercado português e andará em digressão em 2013.

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Produzido por Moreno Veloso (filho de Caetano) e Pedro Sá, tal como os dois anteriores, e editado pela Universal, Abraçaço sucede a (2006), um disco vigoroso e denso, e Zii e Zie (2009), irregular e prenunciador de decadência. Que não se concretizou: o trabalho que Caetano desenvolveu agora com Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria) encontrou o equilíbrio certo entre os riffs vindos do rock, as malhas do violão e a voz de Caetano e o brilho das composições e arranjos.

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Produzido por Moreno Veloso (filho de Caetano) e Pedro Sá, tal como os dois anteriores, e editado pela Universal, Abraçaço sucede a (2006), um disco vigoroso e denso, e Zii e Zie (2009), irregular e prenunciador de decadência. Que não se concretizou: o trabalho que Caetano desenvolveu agora com Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria) encontrou o equilíbrio certo entre os riffs vindos do rock, as malhas do violão e a voz de Caetano e o brilho das composições e arranjos.

É um bom ano para ele, este que vê nascer Abraçaço: Caetano completou 70 anos, a 7 de Agosto, e foi designado Personalidade do Ano pelo Grammy Latino em Novembro. Mas desde a publicação de Livro, em 1997, a que se seguiu o êxito de Prenda Minha (que levou Livro aos palcos e, editado em CD, foi o seu trabalho mais vendido de sempre), nenhum outro seu disco tinha alcançado tal patamar. E ele gravou mais de uma dezena, entre homenagens (a Fellini, com Omaggio a Federico e Giulietta,1999; e à música norte-americana, com A Foreign Sound, 2004), músicas para cinema ou bailado (Orfeu, de Cacá Diegues, 1999; Hable com Ella, de Almodóvar, 2002; Onqotô, do Grupo Corpo, 2005) ou parcerias (com Jorge Mautner, em 2002; com Maria Gadú, em 2011; e com Gilberto Gil e Ivete Sangalo, também em 2011). Discos de originais, depois de Livro e antes de e Zii e Zie, só gravou um: Noites do Norte (2000).

A canção Abraçaço, colocada no YouTube, tem suscitado do Brasil muitos comentários assim: “Que música, meu Deus! Que música!!!! Só consigo falar sobre o disco com interjeições e exclamações”; “Superou minhas expectativas!”; “Putz! Quanta humanidade numa música!”; “Gênio... gênio...”. Sucede o mesmo com outros temas do disco, como “Funk melódico”: “Caetano sempre nos surpreendendo e sempre se reinventando... Obra prima.” O crítico de música do Globo Arnaldo Bloch chama-lhe “um ‘discaço’ no tempo lógico da incerteza” e quando chega à classificação final, sentencia: “óptimo”.

O que diz Caetano a isto? Na entrevista colectiva que concedeu no Brasil, parcialmente reproduzida no YouTube e publicada online pela Agência Estado, Caetano mostra-se particularmente calmo, reagindo de forma branda mesmo quando lhe sugerem que ele “deixou de fazer canções como fazia”: “Eu sou assim mesmo, sempre fui. E não houve uma vez em que eu tenha lançado um disco que as pessoas não tenham dito algo parecido com isso.” E deu vários exemplos: “Quando surgiu, Terra não tocava no rádio porque era longa e alguns diziam ser chata. Sampa não tocava quando saiu. Leãozinho é chavão de canção querida, mas teve muita reacção contrária. Odara teve mais ainda.”

Quanto ao disco em concreto, que tem menos canções do que os seus dois antecessores (11 contra 12 de e 13 de Zii e Zie), Caetano classificou com curtas frases cada uma das canções, duas “de amor físico” (Vinco e Quando o galo cantou), uma “bonita” que é tristíssima (Estou triste), uma parceria com o velho tropicalista Rogério Duarte, que “estava sumido” mas ele reencontrou (Gayana), duas sobre temas político-sociais (O império da lei, sobre o assassinato a sangue-frio, em 2005, no estado do Pará, da missionária americana Dorothy Mae Stang; e Um comunista, sobre o ideólogo da guerrilha Carlos Marighella), uma com referências ao funk carioca (Funk melódico), um e-mail de aniversário que ele transformou em canção e de forma surpreendente (Parabéns, que diz apenas: “Tudo mega bom, giga bom, tera bom. Uma alegria excelsa pra você no paraíso astral que começa. Hehe”). Por fim, as duas que abrem o disco: A bossa nova é foda (“a que eu mais gosto”, diz) e Um abraçaço, feita já com o disco adiantado (acabou por titulá-lo), que ele acha “bonita” mas “melancólica”.
 
Abraçaço, termo que Caetano tem usado para rematar e-mails para amigos, não quer dizer, segundo o próprio, qualquer coisa como “abração” ou “abraço grande”, é outra coisa. “Abraçaço”, disse ele ao Globo a 30 de Novembro, “é uma palavra muito bonita e tem essa reverberação, parece um eco, mais ainda quando escrito, esse a-cê-cedilha duas vezes. É como se fossem círculos concêntricos de abraços, que vão se expandindo. Não é apenas grande ou maravilhoso como é um golaço, por exemplo. É expansivo.”

A bossa nova é foda tem uma história antiga. Primeiro convém dizer que a palavra, que em Portugal é uma obscenidade, não tem aqui quaisquer conotações sexuais. No Brasil, o seu significado é aquele que o dicionário Houaiss aponta em segundo lugar: “Aquilo que se suporta como dificuldade; dureza”.

Ora em 2004, aquando da edição em DVD do seu filme experimental Cinema Falado (de 1986), Caetano Veloso deu uma entrevista, incluída depois como extra no DVD, onde se defende dos que o criticam argumentando: “Tem muita gente que tem problemas com a gente de música popular porque a gente é foda. Não tem outra explicação. Chico Buarque é foda. Eu sou foda. A verdade é essa. Milton Nascimento é foda. Gilberto Gil é foda. Djavan é foda.” Foi a lembrança dessas suas declarações e a necessidade de recordar, hoje, a bossa nova não como coisa bonitinha para tocar em hotéis e elevadores mas como uma coisa complexa e musicalmente rica que o levou a escrever e cantar A bossa nova é foda.

Mas a canção prega algumas partidas ao ouvinte, sobretudo por recorrer a imagens alegóricas. “O bruxo de Juazeiro” citado logo no início é, obviamente, João Gilberto, tal como “o bardo judeu romântico de Minnesota” é Bob Dylan. Mas já não é assim tão fácil descortinar o que esconde o “magno instrumento grego antigo”. Magno, diz Caetano, faz lembrar Carlos Magno, logo “Carlos”; e “instrumento grego antigo” lembra uma lira, logo “Lyra”, logo Carlos Lyra. É um jogo de palavras, sincopado, onde nem tudo é tão encriptado como isto. “O tom de tudo comanda as ondas do mar”? Tom Jobim, claro.

As duas canções inspiradas em temas sócio-políticos também envolvem mais histórias. O império da lei, apesar de se inspirar no assassinato de Dorothy Stang, foi escrita depois de Caetano ter assistido ao filme Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, realizado por Beto Brant e Renato Ciasca a partir do livro homónimo de Marçal Aquino. Caetano viu o filme, leu o livro, “gostou muito” dos dois e escreveu a canção. “Vendo o filme”, disse ele ao Globo, “fiquei muito emocionado e pensando nessa situação do interior do Pará, que a gente acompanha pela imprensa há muitos anos, com a sensação de que o império da lei ainda não pôs seus tentáculos ali de modo firme”.

Por fim, Um comunista. Também tem por detrás um livro e um filme, ambos sobre Carlos Marighella (o livro é de Mario Magalhães, o filme é de Isa Grinspum Ferraz), e surge depois de terem feito canções sobre ele músicos de hip hop como Mano Brown e os Racionais Mc’s (Mil faces de um homem leal). Um comunista não é, no entanto, uma obra de exaltação do comunismo (na canção, a dado passo, Caetano escreve: “não que os seus inimigos estivessem lutando contra as nações-terror que o comunismo urdia”) mas sim de compreensão da figura de Marighella, o “mulato baiano” que quis enfrentar a ditadura militar brasileira com um apelo à guerrilha urbana e acabou morto, precisamente quando Caetano Veloso estava no exílio em Londres.

No livro Verdade Tropical (ed. Campo das Letras”, 1997, pág. 427), Caetano lembra que escreveu “um longo e amargurado texto” para o jornal O Pasquim que terminava com esta afirmação: “Nós estamos mortos: ele está mais vivo do que nós”. Isto porque a revista de maior tiragem então no Brasil tinha publicado na capa as primeiras fotografias de Caetano e Gilberto Gil no exílio londrino, a par da imagem de Marighella morto. “Nem uma só pessoa no Brasil percebeu do que eu estava falando”, escreve Caetano no livro. Agora, na canção, repete a ideia: “O baiano morreu/ estava eu no exílio/ e mandei um recado/ que eu que tinha morrido/ e que ele estava vivo/ mas ninguém entendia./ Vida sem utopia/ não entendo que exista:/ assim fala um comunista./ Porém a raça humana/ segue trágica sempre/ indecodificável/ tédio, horror, maravilha.”

Volta a história, envolta na melhor música. E é esta a guerrilha de Caetano Veloso, que em 2012 ganha uma nova luz.
 
Nota: Este artigo foi corrigido às 23h50 do dia 17 de Dezembro. Onde estava "surge depois de terem feito canções sobre ele músicos de hip hop como Mano Brown (Marighella) ou os Racionais Mc’s (Mil faces de um homem leal)" passou a estar "surge depois de terem feito canções sobre ele músicos de hip hop como Mano Brown e os Racionais Mc’s (Mil faces de um homem leal)." Mano Brown é o vocalista dos Racionais Mc’s e o tema citado é um só. N.P.