Ninguém se salva no caos

Foto
Stanley Kubrick durante as filmagens de A Laranja Mecânica, filme que Anthony Burgess veria em Nova Iorque, numa sala lotada onde teve "de lutar, como toda a gente, para entrar": "Valeu a batalha" SOPHIE BASSOULS/SYGMA/CORBIS

Aos 50 anos, A Laranja Mecânica vai-se libertando do fantasma do filme e ganhando identidade como livro. Mas continua a ser impossível falar de Anthony Burgess sem falar de Stanley Kubrick. Por Isabel Lucas

No filme há alguma compaixão. No livro nem por isso. No filme a regeneração é possível, pelo menos a de um indivíduo. No livro, à partida também, mas hesita-se, e o mal acaba a ganhar. Alex, nome universal, é a metáfora do rapaz que escolhe a violência e que a sociedade experimenta recuperar confrontando-o com imagens de uma violência ainda maior até que esta lhe cause aversão. Até que ponto isso resulta? O homem tem a liberdade de escolher e no seu livre-arbítrio opta inevitavelmente pelo caminho do mal. Alex, enquanto indivíduo, não pode ser dissociado do todo a que pertence e ou há salvação para todos ou para nenhum. É o que parece dizer Anthony Burgess, o escritor inglês natural de Manchester, onde nasceu em 1917, e que, faz agora 50 anos, publicou A Laranja Mecânica, romance que Stanley Kubrick viria adaptar ao cinema em 1972, retirando o livro de Burgess de um pequeno circuito que o idolatrava, mas que não era suficiente para o deixar voar.

São duas obras diferentes, embora uma nasça da outra. Kubrick não se limitou a reproduzir ou interpretar o dióptico de Burgess, uma ficção sobre um futuro próximo sem qualquer utopia socialista género H.G. Wells. Assenta no ponto de que a tecnologia não leva à salvação mas à destruição da humanidade quando esta é colocada na sua circunstância natural de escolha. É que para Burgess, mais na linha de Aldous Huxley, em caso de escolha o homem escolhe o mal.

Músico, crítico literário, linguista, sátiro, praticante do humor mais sarcástico, Anthony Burgess estava longe de adivinhar o futuro do romance que escreveu numa altura em que o dinheiro rareava e não havia encomenda que não aceitasse. Escreveu cinco romances em 14 meses. Ele conta a génese desta história de lavagem ao cérebro que é A Laranja Mecânica num dos textos da edição comemorativa que agora chega a Portugal pela Alfaguara - um volume organizado por Andrew Bishwell, biógrafo do escritor, que traz um prefácio e um posfácio da autoria de Burgess, ambos escritos nos anos 80, reproduções do manuscrito, com notas e ilustrações do autor, uma selecção de entrevistas, recensões e artigos sobre o livro, além de um glossário de Natsate, o dialecto que Burgess criou, a partir do russo, para descrever o universo cosmopolita e violento de A Laranja Mecânica.

Conforme relata no texto aqui publicado, Burgess fala da surpresa. Quando se tinha na conta de um mero entertainer, o seu nome foi projectado para a esfera do chamado pensamento sério. Tudo imediatamente depois do filme de Kubrick. "Fui ver A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick a Nova Iorque, onde tive de lutar, como toda a gente, para conseguir entrar. Valeu a batalha", escreveu num texto de 17 de Fevereiro de 1972. "É um filme muito à Kubrick, tecnicamente brilhante, profundo, relevante, poético, revelador. Foi-me possível encarar a obra como uma recriação radical do meu romance, não como uma interpretação, e isso - essa sensação de que não era impertinência nenhuma proclamá-la como A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick - é a melhor homenagem que posso prestar a mestria kubrickiana. No entanto, não deixa de ser verdade que o filme nasceu de um livro, e parte da controvérsia que começou a colar-se ao filme é uma controvérsia na qual eu próprio, inevitavelmente, me sinto implicado. Em termos de filosofia e até de ideologia, a laranja de Kubrick é um fruto da minha árvore."

E a árvore tem na base Alex, um jovem delinquente que bate, mata, violenta e vive no meio de outros como ele, num mundo onde se fala o Natsate (o prefixo russo para teen). Estamos perante uma juventude delinquente, que pratica o horror sem qualquer espécie de culpa católica. Perto destes jovens, os Teddy Boys dos anos 50 eram uns meninos, chegará a dizer o escritor que refuta a acusação de que foi alvo - ele e Kubrick, mais uma vez - de haver um gozo gratuito na criação deste mundo ficcional de terror. "Não me foi de todo agradável descrever actos de violência enquanto escrevia o romance: cedi ao excesso." Refere-se ao livro como um texto homílico, uma espécie de sermão sobre a possibilidade de escolha. A crueldade de Alex é consciente.

O livro ultrapassou em tudo o que o seu autor esperou dele. Esperava pouco. Contra-cultura. Mas acabou a influenciar uma cultura pop que ele tanto criticava, como lembra Andrew Biswell no prefácio. Além de Andy Warhol, que ainda fez uma adaptação, a que chamou Vinyl, A Laranja Mecânica deu que falar através dos Rolling Stones, esteve na origem de nomes de bandas como os Moloko ("leite" em Natsate), inspirou um vídeo dos Blur, e até uma digressão de Kylie Minogue. O mundo literário não lhe ficou imune. Muitos autores confessaram um contágio burgessiano, sobretudo na liberdade que tomou com a linguagem. E não são uns quaisquer: J. G. Ballard, Martin Amis, William Boyd, A. S. Byatt...

Há uma lição? Burgess assegura que sim: "Aquilo que poderá acontecer-nos no Ocidente se não estivermos de sobreaviso."

Sugerir correcção