Padre Frederico, outro país

Em 1992, quando aterrei na Madeira com o fotógrafo Carlos Lopes, dias depois de o padre Frederico Cunha ter sido acusado de abuso sexual e da morte de um rapaz de 15 anos, demos por nós a percorrer mais de metade da ilha para tentar compreender a história.

Começámos pela paróquia de Água de Pena, onde o padre dava missa no momento em que fora preso. Aí falaram-nos da sua amizade com um jovem estudante de quem nunca se separava e com quem passava as noites a ver filmes. Em poucos dias, percebemos que o padre tinha chegado a esta última paróquia com uma sombra de histórias esquisitas passadas na paróquia do Piquinho, onde estivera antes. Nesse "posto", ouvimos falar da sua "técnica do sofá". Aos domingos à tarde, depois da missa, o padre pedia às crianças que se sentassem no sofá, todas ao mesmo tempo, aos sete, oito e dez de cada vez, para que, quando não restasse um milímetro de espaço livre, ele se atirasse para cima de todos em grande divertimento. Tinha chegado aqui vindo de uma terceira paróquia, a de São Jorge, no Norte da ilha, de onde também foi transferido pelo bispo do Funchal, sem alarido nem explicações.

O padrão repetiu-se durante quase dez anos. Frederico Cunha chegava a uma paróquia, chocava com o seu comportamento - mais ou menos explícito, mais ou menos bizarro -, e o bispo, de quem fora secretário particular, transferia-o para uma aldeia alguns quilómetros abaixo.

Até que o padre deu boleia a dois rapazes. Um acabou morto no fundo de uma ravina. O outro contou em tribunal o que se lembrava da estranha conversa que o padre tivera com eles enquanto guiava o seu carocha preto decorado com caveiras pelas sinuosas curvas da Madeira. "E tu, já tens bigodes de baixo?" foi uma das frases da noite do crime que marcou o julgamento de 1993. O padre acabou condenado a 13 anos pela morte do jovem e por homossexualidade tentada com menor.

Reservado e discreto, o juiz madeirense Sílvio Sousa revelou-se um homem corajoso e moderno. Abriu a primeira sessão perguntando ao réu "O senhor é homossexual?" e terminou a dizer que o adolescente amigo do padre, o tal estudante de quem ele nunca se separava, mentira em tribunal para tentar salvar o padre. "E isso é crime", disse o juiz. A agitação na sala foi clara. Mas logo a seguir, num momento surpreendentemente poético, argumentou que teria uma pena suavizada por o tribunal compreender que o rapaz mentira por amor, por amor ao padre Frederico.

Entre avanços e recuos, uma coisa podemos dizer. Portugal já não é o país que faz de conta que a pedofilia não é um problema grave; já não é o país que, como fez há 20 anos, esconde e protege sem pudor padres suspeitos de abusos sexuais a menores.

Ao contrário do caso do padre Frederico, agora, no Fundão, o vice-reitor do seminário foi acusado de abusos sexuais contra menores e rapidamente posto em prisão domiciliária com uma pulseira electrónica; ao mesmo tempo que o bispo local se desdobra em declarações públicas marcadas pela transparência e vontade de saber a verdade. Tudo numa questão de dias.

Dirão: a pedofilia já não é tabu. É em parte verdade. Mas acima de tudo a velocidade e naturalidade deste caso mostra que deixou de ser possível esconder as acusações de pedofilia. Não necessariamente porque a igreja mudou. Há no entanto uma nova consciencialização. Os cidadãos fazem queixas, a polícia não guarda as queixas na gaveta e a Igreja Católica portuguesa está a aprender - ainda que à força e por causa da brutalidade dos escândalos internacionais - que tem de encarar as acusações de frente.

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