Da não-Europa

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A G.O.M.

Como ninguém é Europa, salvo como entidade geográfica, ou a título mítico ou virtual, que um ou outro país europeu não se reconheça no Frankenstein histórico que é hoje a União Europeia não deve espantar nem escandalizar. Acontece, até simbolicamente, que o pai do monstro que há meio século se devora tem um nome, um desígnio, no seu género, messiânico: chama-se Inglaterra. Enquanto ela tiver força e poder financeiro para o levar a cabo, nada que se pareça com o sonho para ela "demoníaco" de Jean Monet verá a luz do dia. Era o voto da Senhora Thatcher e nunca esteve mais na ordem do dia do que neste momento.

A Inglaterra não é apenas uma "nação" entre as outras nações europeias. Desde o tempo da armada invencível (que é o de Shakespeare, que mitificará para sempre essa hora imperial), a Inglaterra é ao mesmo tempo uma super-nação. No contexto europeu, entenda-se. A França, a Alemanha, a Rússia, que poderiam ter-lhe disputado essa vocação imperial e imperialista, nunca o conseguiram. Waterloo acabou com o sonho francês, a capitulação de Berlim com o sonho alemão, a implosão soviética com o messianismo russo.

A Inglaterra foi durante meio milénio o império romano ressuscitado em escala planetária. Como estranhar que uma "pequena Europa", duas vezes vencida por si mesma, a compense, em realidade e glória, do que perdido é ainda mais do que Europa?

Há meio século, apesar do seu crepúsculo imperial assinalado pela perda da Índia e a mais imprevisível emergência da China, a Europa podia ter sido seduzida pelo modelo inglês. E estaríamos agora a viver - quem sabe - uma pax britannica numa Europa predestinada desde os tempos de César aos divinos filhos de Albion... O desespero europeísta é hoje tão profundo que esta utopia retrospectiva nos parece preferível ao nosso destino de Titanic do Ocidente.

Esta réverie desesperada poderá ser a nossa, mas não é, nem nunca terá sido a do único povo friamente político do Ocidente. A literatura - gloriosa como nenhuma - fez o resto. O génio com que a versão inglesa da História - da sua e dos outros - soube sempre designar os seus adversários como os "maus da fita" da nossa lamentável odisseia de europeus é insuperável. Ninguém mais do que a Inglaterra assumiu com convicção a ideia de que o destino do mundo - e sobretudo o sentido dele - era a sua vocação providencial. A Segunda Guerra Mundial - havia razões de vida e morte para isso - elevou a BBC a consciência da nossa Civilização. O que os Estados Unidos fizeram trinta anos mais tarde, convertendo o público planetário em refém de Hollywood, é apenas o efeito dessa primeira emergência do Ocidente na versão anglo-saxónica da História, convertida na Bíblia profana do Capitalismo de que a Inglaterra foi e é ainda o actor mais eficaz, apesar das aparências.

Quem escreve a História faz a História. A história moderna é essencialmente de matriz anglo-saxónica, expressão da sua vontade de poder de essência já "científica" e pouco "ideológica" - à francesa, nosso modelo. História como "mimesis" do acontecimento político fundador do Ocidente, o da edificação do Império Romano, a quem o inglês Gibbon consagrará a sua memorável e paradigmática evocação.

A outra Europa, aquilo que está vivendo neste crepúsculo de olhos abertos é o seu destino de Europa-Cartago. Sem a epopeia da resistência que foi a de Aníbal. Morremos anestesiados pelo vírus dos vírus de matriz protestante que pôs em tela de juízo a visão medieval do mundo e a sua coerência imaginária. De nada nos valeu a nós outros, portugueses e espanhóis, descobrir sob o signo de Constantino um Novo Mundo e mais desconhecidos da restante Europa. Serão herança dela e fundamento do seu Poder, o poder moderno por excelência, o do saber "como forma do mundo" e da técnica que dele advém. Estávamos prontos para ficar à mercê da versão anglo-saxónica da História da Europa, como está à vista.

Só nos resta descer às catacumbas onde a nossa alma se inventou naquele tempo uma nova ideia de Deus como não-Poder. E ressuscitar, como Novalis o sonhou, uma "outra-Europa", uma Europa onde não triunfem apenas instâncias obscuras sem outra ideologia que a da gestão do "ouro do Reno" wagneriano, convertido em deus do coração humano. Sem a música do génio para redimir tão sinistros actores do nosso destino colectivo. Sempre era uma consolação.

Vence, 23 de Novembro de 2012

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