O ajustamento e a alegoria da caverna

Nunca como desta vez Vítor Gaspar dedicou tanto tempo e carinho às questões do crescimento

Oprograma de ajustamento acordado com a troika continua a ser visto pelo Governo na perspectiva dos homens acorrentados na alegoria da caverna de Platão. O que ele vê não é a luz original, mas as sombras que projecta; o que o Governo vê não é uma grave crise económica e social provocada pela austeridade, mas o balanço de uma avaliação estatística que está longe de reflectir a gravidade da situação. A troika esteve em Portugal, constatou que já foram executadas ou estão em curso 95% do total de medidas do programa e isso é sem dúvida uma boa notícia. Mas o que ficou por ser dito e encarado com realismo e verdade é o custo que essas medidas provocam e que podem continuar a provocar no futuro próximo. Marcado pela crueza da experiência, Vítor Gaspar vai dizendo que para o futuro "prevê-se", "estima-se", "espera-se" ou "aguarda-se" que o paciente reaja à terapia. Num esforço de rigor que o afasta da visão abstracta dos números, não se cansa de advertir que há riscos no horizonte que podem arrasar todas as previsões. Por isso o ministro insiste em rever as leis que enquadram a programação e execução orçamental. Por isso insistiu na necessidade de se avançar com as reformas nas funções do Estado que pouparão 4000 milhões de euros sem comprometer a equidade social - mas que darão enormes dores de cabeça aos funcionários públicos, principalmente os que estão em regime de mobilidade especial. Por isso, ainda, tenta deixar de ser o ministro do défice e procura ser o ministro das Finanças. Nunca como desta vez Vítor Gaspar dedicou tanto carinho às questões do crescimento. Além de mudanças no IRC, o ministro falou em "iniciativas de natureza financeira" e em acelerar a simplificação de procedimentos. Tudo isto permanece ainda em mistério, mas, em definitivo, o Governo preocupa-se em deixar apenas de ver os reflexos na parede da caverna e em espreitar o mundo real. Já é um começo.

Na Ásia, entre a China e a democracia

Aprimeira viagem de Barack Obama após ter sido reeleito teve como destino mais significativo um país que nunca tinha recebido um Presidente norte-americano. Num processo de transição por enquanto incompleto de uma ditadura militar para um regime democrático, a Birmânia é também um país central para o reposicionamento dos Estados Unidos face à China no teatro geoestratégico da Ásia. Se Pequim apoiou os militares, a democratização está a ser porta de entrada de Washington para contrariar a influência chinesa, inscrevendo os direitos humanos na agenda. Ninguém mais do que Aung San Suu Kyi, a lendária resistente birmanesa, merecia o privilégio de receber Obama, mas ainda há presos políticos na Birmânia. A viagem, que trouxe às ruas uma multidão sedenta de liberdade, foi no entanto uma forma de afirmar que a abertura é irreversível. Só que não se sabe até aonde ela irá.

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