A melhor crítica que alguma vez já se fez

Em 1984, Alexandre O"Neill e António Lobo Antunes almoçavam juntos todas as semanas. O poeta aparecia nesses almoços, sempre de fato e gravata, muito composto e Lobo Antunes devia aparecer com o que tinha por baixo da bata que usava no hospital. "O O"Neill era um poeta que não gostava de ninguém. Ele tinha imensa graça, não gostava de mim mas eu gostava dele. Ele não gostava de ninguém...", está a contar António Lobo Antunes no festival literário Escritaria, que aconteceu em Penafiel há uma semana.

Um dia estavam os escritores num restaurante e entrou o pintor Manuel Cargaleiro. Olhou para os dois, avançou e disse: "Ainda bem que vos encontro, logo aos dois, vou fazer uma exposição em Paris e gostava que escrevessem um texto para a minha exposição!" Ao mesmo tempo que ia dando pontapés debaixo da mesa a Lobo Antunes, Alexandre O"Neill respondia ao amigo pintor: "Claro que a gente faz, a gente faz, quando vais para Paris? Mandamos-te por telegrama." "Por telegrama?! Mas isso vai ser caríssimo", interrogou-se o amigo já a pensar na extensão do texto para o catálogo da exposição.

Mal Cargaleiro se afastou, recorda Lobo Antunes, O"Neill diz-lhe: "É a mulher-a-dias da Vieira da Silva. De cada vez que a Maria Helena deixa cair um quadradinho, ele apanha, junta dois e tem um quadro." E foi assim que a dupla Alexandre O"Neill (1924-1986) e António Lobo Antunes se juntou para escrever "a melhor crítica que alguma vez se fez". O escritor já se está a rir ao contar que se tratava de uma análise bastante profunda e crítica, e que era assim: "Cargaleiro que carga um cargalhão, carga um cento." Ouve-se uma gargalhada geral na sala do museu de Penafiel onde está a decorrer a sessão do Escritaria.

"Na altura achámos que aquilo era uma obra-prima da crítica da pintura", continua Lobo Antunes. "Passados uns meses, estávamos no mesmo restaurante e apareceu o Cargaleiro e não nos falou. Dizia-me o Alexandre: "Já viste? O homem nem sequer nos fala. O que se terá passado?!" E eu respondi: "Sei lá! Também não estou a perceber." O Alexandre já morreu e eu ainda continuo por cá sem perceber porque é que o Cargaleiro não nos falou." Vinha esta história a propósito da análise que a académica Ana Paula Arnaut fez do romance que António Lobo Antunes acaba de publicar, Não é meia-noite quem quer (ed. Dom Quixote) na sessão do Escritaria. E foi assim que o escritor se safou brilhantemente de ter de dizer alguma coisa sobre o assunto, concluindo: "Como co-autor da melhor crítica de arte que se conhece, não vou comentar a crítica da Ana Paula Arnaut, com umas coisas concordo com outras não, mas ela está em vantagem, ela leu o livro e eu não, só o escrevi."

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