Don Pasquale: ópera como no cinema

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"Há mil anos que amamos, enganamos, ambicionamos e traímos da mesma maneira" Miguel Manso

A ópera de Donizetti podia ser teatro e acaba por ser uma homenagem ao cinema. Confuso? Não. Apenas a versão de Italo Nunziata de uma opera buffa do séc. XIX. Estreia hoje, às 20h, em Lisboa

Don Pasquale nos anos 20 e não no final do século XIX, numa versão que faz de Norina a grande protagonista. De viúva pobre e frágil, ela passa a mulher forte e emancipada, capaz de gerir com astúcia uma trama complicada, sem nunca perder de vista o seu amor por Ernesto e o desejo de dar uma lição ao velho industrial que parece acreditar que o dinheiro pode comprar tudo.

A ópera de Gaetano Donizetti que estreia hoje no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, é uma produção do prestigiado La Fenice e tem encenação de Italo Nunziata, o homem que fez questão de transportar esta heroína de uma das mais celebradas obras do compositor italiano para um tempo em que o cinema tinha uma linguagem universal. É por isso que a Norina deste Don Pasquale faz lembrar as divas de Hollywood, mas também as dos estúdios italianos da mesma época: elegante e determinada, quase fatal.

"É uma mulher por quem se perde a cabeça", diz Nunziata, descrevendo-a como uma figura completa, cheia de contradições, como alguém que quer ascender socialmente, mas permanece fiel aos valores que considera fundamentais. "É um arquétipo que podemos encontrar no cinema da época no Ocidente", explica o encenador habituado a Donizetti (já fez vários), para quem a ideia de transportar Don Pascuale para os anos 20/30 foi imediata.

A homenagem ao cinema veio depois, quando percebeu que, para construir as personagens e "mostrar a universalidade da música do compositor", nada melhor do que ir buscar referências aos estúdios da época. O seu Ernesto, por exemplo, deve muito ao realizador e actor italiano Vittorio di Sica; Norina teve por grande inspiração La Segretaria Privata, um filme de 1931 baseado num original alemão que teve também uma versão francesa. "As histórias eram as mesmas de país para país e é por isso que estas personagens são tão reconhecíveis. O enredo de Donizetti e [Giovanni] Ruffini também é eterno. Há mil anos que amamos, enganamos, ambicionamos e traímos da mesma maneira."

Talento teatral

A jovem cantora lírica portuguesa Eduarda Melo, que recentemente integrou o elenco da serenata L"Ippolito na Casa da Música, será Norina. Aos 33 anos, vê esta personagem de Donizetti como um "desafio cénico e vocal", para o qual se preparou vendo muitos filmes e documentários sobre as divas de Hollywood e Marlene Dietrich. "Queria apanhar gestos, expressões, maneiras de andar. Queria homenagear estas mulheres fortes como Norina que, naquela época, tinham de trabalhar o dobro dos homens para provar o seu valor e que acabaram por fazer muito por nós."

A direcção de Nunziata é, para Melo, uma das mais-valias desta versão, determinante sobretudo quando às personagens é exigido que façam teatro dentro do teatro (Norina finge ser uma mulher muito diferente da que é para que Don Pasquale case com ela).

José Fardilha, um dos mais internacionais cantores líricos portugueses, veste a pele do rico industrial que quer manipular o sobrinho Ernesto, mas que acaba enganado por Norina e pelo Dr. Malatesta. Não é a primeira vez que faz um Don Pasquale (foi o Dr., em Trieste), mas é a primeira em que sobe ao palco como um velho (Fardilha faz hoje 56 anos, Don Pasquale anda na casa dos 70): "Não foi difícil, embora esta personagem, muito mais versátil e interessante do que a do Malatesta, seja complicada em termos vocais, porque Don Pasquale está sempre chateado, o seu papel tem muitas palavras, muitas notas", explica.

Tanto Melo como Fardilha defendem as qualidades desta que é a penúltima das mais de 60 óperas que Donizetti compôs ao longo da sua carreira (estreou em 1844, o compositor morreu quatro anos mais tarde). "As personagens são muito bem construídas, têm muitas leituras", diz Melo. "Musicalmente, tem pormenores riquíssimos, lindos, como aliás quase todas as últimas óperas dos grandes compositores", acrescenta Fardilha, lamentando que está ópera não se faça muito. "É de uma imensa expressividade e tem paradoxos deliciosos, como o de se encontrar música dramática em momentos que são claramente cómicos."

A comicidade, própria da opera buffa, género de que Don Pasquale é um "ápice", segundo Italo Nunziata, atrai o cantor, mas também o encenador. Aqui, como noutras óperas suas - basta ver a célebre Lucia di Lammermmoor -, Donizetti revela todo o seu talento teatral. "Ele é um génio da cena", defende o encenador. "Domina os tempos, o espaço, a construção das personagens, o enredo. Se tirássemos a música, o libreto podia encenar-se como encenamos qualquer peça de teatro - está tudo lá." O humor, esse, vem em grande parte de dois referentes: o modelo da "comédia de enganos" de Feydeau, de finais do século XIX, e a commedia dell"arte (Don Pasquale é Pantalone, Ernesto é Pierrot, Norina a bela Columbina).

Don Pasquale, lembra Nunziata, tem, além disso, um pouco do próprio Donizetti, que quando compunha esta ópera em três actos estava também apaixonado por uma mulher muito mais jovem, a filha de um amigo napolitano, que não o amava. "Ele é parecido com Don Pasquale - sabe que está a chegar ao fim, mas não desiste de viver tudo intensamente."

Temporada em espera

Don Pasquale, a única ópera em estreia na temporada Outono-Inverno do São Carlos, esteve para ser feita no ano passado, mas foi adiada por causa do corte de 20% no financiamento dos teatros nacionais. João Villa-Lobos, que preside à Opart, o organismo criado em 2007 para gerir o teatro de ópera e a Companhia Nacional de Bailado (CNB) e que agora deverá desaparecer para dar origem a um Agrupamento Complementar de Empresas (ACE) que incluirá ainda os outros dois nacionais e a Cinemateca, não quer ainda falar da programação a partir de Janeiro. "Este Don Pasquale é um compromisso que tínhamos já assumido e queríamos muito trazê-lo", explicou ao PÚBLICO.

Até ao final do ano, o São Carlos tem em destaque apenas a reposição de uma ópera para crianças e a versão concerto da Thäis de Massenet. Falta de dinheiro? "Neste momento, não quero falar de orçamento. Ainda não sabemos ao certo quanto vamos ter, mas estamos a trabalhar com base no pressuposto do ano passado [15 milhões de euros para a CNB e o teatro, que recebe a maior fatia, 9,9 milhões] e não estou a contar que desça desse montante." Villa-Lobos garante que Martin André, director artístico do São Carlos, tem já a próxima temporada pronta e espera apenas a audiência com o novo secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, para avançar com a sua divulgação.

O presidente da Opart não revela se essa temporada vai ou não incluir as outras duas óperas (Turandot e Francesca da Rimini) que ficaram por fazer no ano passado por causa dos cortes nem comenta a sua eventual nomeação para a presidência do novo ACE, algo que vem sido já dado como muito provável há largos meses.

Don Pasquale fica em cena até 10 de Novembro, com bilhetes mais baratos do que na temporada anterior: entre 20 e 50 euros (65 para a noite de estreia).

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