Benjamin Biolay não é um enfant-terrible, é um homenzinho adorável

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Quando apareceu, parecia condenado a conquistar crítica e público. Mas uma boca demasiado grande, a mania de dizer mal dos seus parceiros, e um punhado de discos inclassificáveis tornaram-no "difícil". Ei-lo de volta, e com uma vingança: ser mais luminoso.

Ser um enfant-terrible profissional terá certamente as suas compensações, mas também as suas desvantagens: um médico ou um engenheiro podem desempenhar a mesma função ao longo da vida; um enfant-terrible chega a uma idade em que só resta o terrible porque o calendário há muito impede que continue enfant.

Benjamin Biolay, o enfant-terrible da Nouvelle Chanson e suposto herdeiro de Gainsbourg na dupla tarefa de criar melodias de encantar e proferir declarações de irritar o mais santo, deparou-se com o problema nos últimos tempos. Ao fim de mais de uma década a ser notícia nos jornais pelas piores razões, está "cansado" das confusões mediáticas. "Tenho 40 anos", diz, ao telefone desde França (incorrendo numa imprecisão: só completa as quatro dezenas a 20 de Janeiro). "Cheguei a um ponto em que o que me interessa são as canções. Não posso controlar o que dizem sobre mim, pelo que não quero saber", continua num registo seco mas que denuncia o esforço para ecoar alguma humildade. Depois acrescenta: "Mas caso gostem de mim devem comprar os meus discos, ok?" E ri-se.

Não é muito comum Biolay rir-se, e não é muito comum ele procurar ser humilde, mas compreende-se: quando em 2001 surgiu em nome próprio com Rose Kennedy, belíssimo, de cabelo puxado para trás, cigarro sempre aceso e olheiras fundas denunciando um total desprezo pela sã existência burguesa, foi visto como um prodígio. O duplo álbum Négatif, de 2003, cimentou-lhe a reputação, bem como as canções escritas para Coralie Clément ou Henri Salvador. Biolay parecia um daqueles casos improváveis de talento e de trabalho que ainda por cima atingiam o grande público. Mas em 2007, depois de Trash Ye-Yé, um disco mal-amado, foi abandonado pela editora. O duplo La Superbe (2009), cuja canção-título é um espanto, foi, apesar da sua ambição de opulência, distribuído por uma casa pequena e não lhe garantiu riqueza eterna. Pelo meio, Biolay ainda foi acusado de ter um caso com a então primeira-dama, Carla Bruni, o que, como sempre, o levou a disparatar nos jornais.

É neste cenário que Biolay lança novo disco, para mais chamado Vengeance. Desengane-se quem pensar que o título é uma forma de mandar toda a gente à outra parte: Biolay diz que este "é um disco mais luminoso e festivo" do que La Superbe, e que a ideia de Vengeance "é romântica". "O disco foi escrito nos momentos mais felizes que tive nos últimos anos", sublinha, e por um segundo tentamos imaginar um Biolay feliz, mas a ideia provoca um curto-circuito neuronal. Desistimos. Ele também: "Ou então o contrário: estava deprimido e ia dançar."

Isso de a vingança ser um conceito romântico é discutível. Mas lá que Vengeance tem ocasionalmente algo de festivo e dançável é a mais pura verdade: ainda há baladas e cordas a rodos, mas é possível dançar ao som de Sous le lac gelé e L"insigne honneur. "Eu ainda saio para dançar, e alguma da electrónica que surge no disco vem daí", explica Biolay, entrando seguidamente em modo nostálgico: "Mas essas canções específicas vêm dos tempos da adolescência: eu e os meus amigos éramos enormes fãs da pop de Manchester, dos Happy Mondays aos New Order. Na altura, tentávamos imitá-los, mas tocávamos muito, muito mal e não conseguíamos fazer nada que soasse semelhante." Biolay acrescenta que a "copiar o som deles agora é a [sua] vingança".

Ouvir Biolay admitir pilhagens a obras alheias é surpreendente. Descobrir, em Belle époque, décima canção do disco, que paira algures entre a soul e o hip-hop, o seu amor à soul clássica, também. "Não sei se essa faixa é soul ou hip-hop, mas para mim hoje em dia não há muita diferença. Eu ouço de tudo: no meu iPod tenho soul, indie, canções francesas". Contrariando a ideia de ser um tipo que só gosta da sua própria música, Biolay diz ser um coleccionador de discos e não só: "Quando sou fã de alguém, tento ter tudo, até posters e t-shirts."

É o caso de todos os discos editados pela Tamla Records, uma das editoras clássicas da soul dos anos 1960. "Tenho a colecção completa e um grande amor a esses discos. A minha voz é muito branca, pelo que não devia fazer canções assim, mas adoro aquele tipo de música", diz, fazendo depois algo que julgávamos inimaginável nele: elogiar outra pessoas. "Há uma cantora de que eu gosto muito, a Eliza Jo - e ela lembra-me muito a Tamla."

Durante muitos anos, Biolay parecia ter maior tendência a falar dos seus ódios do que dos seus amores, o que o leva hoje a admitir que "sempre [foi] mau com a comunicação": "Fiz má promoção, dava entrevistas contrariado e fui ingénuo ao ponto de pensar que no fundo todas as respostas estavam nos discos. Pensava que podia ser publicamente como era em privado e dizer tudo o que quisesse. No Reino Unido ou nos EUA aceitam a estranheza, o tipo que diz disparates. Na Europa somos todos muitos tolerantes, mas é obrigatório ser-se muito educado e gostar de toda a gente. Eu não gosto de toda a gente." Mas gosta de Lauryn Hill e Stevie Wonder: "São os meus heróis. Adorava colaborar com eles. Nunca o tentei: tenho de ser realista, nunca aconteceria. Eles são gigantes e eu sou minúsculo". (Neste momento o tom de humildade de Biolay rebenta a escala e ficamos a olhar para o telefone com ar aparvalhado. Que raio aconteceu a este tipo?)

E é então que chega a confissão mais embaraçosa, mas possivelmente também mais bonita de toda a conversa - uma confissão que, imaginamos, Biolay repetiu ou repetirá uma centena de vezes a diferentes entrevistadores. É sobre Songs In The Key of Life, a obra-prima de Stevie Wonder: "Algumas pessoas dão-lhe menos valor, porque tem canções mais suaves, mas até hoje esse disco faz-me chorar e há muito pouca coisa que me faz chorar, que me tira de mim e me lança para dentro das canções. Ouço Ghettoland, sobre a vida no gueto, e por mais cliché que seja acho-a tremendamente honesta e não aguento."

Como um vampiro

Ainda há outra coisa que Biolay admira em Hill e Wonder: "Eles desaparecem na canções". Biolay diz que a compor consegue o mesmo, mas em palco a sua auto-consciência, a noção de estar a fazer figuras ridículas em frente a um público, de que é um homem e não uma estrela, torna a experiência dolorosa. Nos últimos tempos, porém, tem trabalhado como actor e "o cinema ensinou[-o] a esquecer-[se] de [si]", pelo que hoje já consegue "apreciar um concerto ao vivo": "Quando tens de morrer, berrar, andar à pancada ou fazer amor à frente de uma centena de pessoas, ultrapassas esses bloqueios, perdes a auto-consciência."

Biolay é cinéfilo e diz que é desse amor que vem a sua obsessão por cordas, que, como sempre, está por todo o disco. "No cinema é como se as cordas completassem o plano - o Hitchcock é um bom exemplo. Quando escrevo cordas é o meu lado de fã de cinema a surgir. Penso "Vou pôr tensão entre as personagens da canção". Amo muito as cordas, mas como não sou um virtuoso tenho de trabalhar muito." O seu amor cinéfilo pelas cordas vai ao ponto de não raras vezes começar a compor não à guitarra ou ao piano mas "logo pelo arranjo de cordas", o que é caso raro. O que não ele consegue é "fazer um disco todo baseado em cordas ou num só género": "Todos os dias mudo o instrumento em que componho. Não consigo ficar quieto. Os meus editores pediram-me centenas de vezes: "Podes fazer esta canção dez vezes, mas ligeiramente diferente?" Não consigo. Os meus discos vão a todo o lado e isso torna-me difícil de rotular e comercializar."

Apesar de prolífico, Biolay está, neste momento, sem escrever canções há dois meses. "Para escrever", diz, "é preciso ter coisas para dizer - esse é o acordo que tens de ter com o ouvinte. E hoje não tenho nada para dizer. As canções vivem da vida - não obrigatoriamente da minha, pode ser a dos amigos ou de um livro. É preciso reunir muitas emoções, conhecer pessoas, para escrever coisas interessantes". Admite que às vezes se sente "um vampiro", mas que isso não acontece no exacto momento em que está "a viver as coisas". "Não vivo a pensar "Tenho de usar isto". Não uso as pessoas. Só que tenho uma tendência reflexiva e passado algum tempo de viver algo revejo as coisas e elas acabam por ir parar às canções", explica.

O próximo passo será Home 2, a sequela (em todos os sentidos do termo), de Home, o disco que gravou com a então mulher, Chiara Mastroianni, o único álbum musicalmente homogéneo da sua carreira. "Comecei agora a escrever a segunda parte do disco. Eu tenho uma digressão, ela tem filmes, e é difícil conciliar as agendas, mas temos de fazer o disco. Será muito diferente, mas manterá uma coerência temática", como o primeiro (que era sobre a vida quotidiana de um casal). Em Home, apesar de o casamento estar a ruir, Biolay e Mastroianni "foram "muito profissionais": "A Chiara é a mãe das minhas crianças. Temos uma relação que é muito importante para mim e para elas, temos mesmo de fazer o disco."

Nem criança nem terrível, este Benjamin Biolay: pelo ao menos ao telefone com um desconhecido, é um homem feito, com as suas dores, as suas arrogâncias, as suas manias e o seu humor. Quando no fim da conversa ele diz que "nunca [será] amado em França", respondemos-lhe que às vezes basta sair de casa para se respirar melhor.

Ver crítica de discos pág. 30 e segs.

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