Halloween, um rapper de culto que actua no dia de todos os mortos

Foto
Halloween tornou-se o mais próximo que alguma vez houve, em Portugal, do protótipo do rapper Nuno Ferreira Santos

Há um ano, o rapper de Odivelas ainda era um segredo. Agora é um ícone e abre hoje, no São Jorge, em Lisboa, o Misty Fest

Allen Halloween senta-se na esplanada da varanda do Cinema São Jorge, em Lisboa, onde hoje actuará na abertura do Misty Fest, e antes da primeira pergunta diz, na voz cava que lhe conhecemos dos discos: "Arranjas aí um cigarrinho?" E é quanto basta para percebermos que, apesar de tudo o que aconteceu desde o lançamento do seu último disco, Árvore Kriminal, o seu lado de puto de rua não desapareceu.

Ser convidado para abrir hoje, às 21h30, um festival de música cujo cartaz inclui gente há muito instituída como A Naifa, Amélia Muge ou os Cowboy Junkies diz bem do estatuto que o rapper de Odivelas alcançou. Em 2006, quando editou o primeiro álbum, Projecto Mary Witch, Halloween tornou-se um rapper de culto, talvez o mais próximo que alguma vez houve, em Portugal, do protótipo do rapper que retrata a violência das ruas, porque realmente a conhece.

A voz cavernosa, a obsessão com violência e morte e a produção pesada dos discos contribuíram para que o rapper, de 32 anos, adquirisse contornos míticos e se contassem a seu respeito as mais mirabolantes histórias, sendo a mais caricata o rumor da sua morte, em 2010 - o tipo de boato que por norma só afecta os mais ilustres.

Mas o disco Árvore Kriminal, apesar da sua brutalidade, veio alterar tudo isso: não só o apreço crítico foi unânime, como a exposição mediática cresceu exponencialmente. De súbito, ele tornou-se não só conhecido como respeitável. "Senti isso no meu dia-a-dia", diz, no ritmo arrastado que é a sua imagem de marca. "Passei a receber mais amor, mas algumas bocas, também."

Não foi só o amor e as bocas que aumentaram: os concertos e as vendas idem. Agora toca "umas, duas vezes por mês, pelo menos", o que, parecendo pouco, "é o dobro do que acontecia antes". "E os lugares são muito maiores - antes era tudo muito mais underground". O seu grande mercado é externo. "Onde estou a vender bem é Angola", conta, sem a mínima inflexão na sua voz. "De vez em quando lá me pedem para enviar mais mil discos [para Angola]. Fui lá este ano e fechei um concerto onde estava o Boss Ac e o Gabriel O Pensador." E este é o único momento em quase uma hora de conversa em que a voz se lhe alteia.

Halloween, cujo nome verdadeiro é Allen Pires Sanhá, "não "tava muito à espera" de se tornar o centro das atenções e tentou, garante, evitar o lado mais pernicioso da fama: "Não sou muito de frequentar certos meios mais populares. Para ser sincero, prefiro ficar quieto na minha zona, com a minha crew." "Se vens do bairro de onde eu venho [o bairro Azinhaga do Barruncho], e te tornas famoso da noite para o dia...", diz, fazendo uma pausa antes de atirar, "tens de ter um grande autocontrolo."

A sua reserva é uma questão de cautela e não uma questão, por assim dizer, ideológica contra a fama. Aliás, confessa nunca ter tido vontade de se ficar pelas margens. "Nunca fui muito de curtir as bandas que ninguém conhecia", conta. "Aos 14 anos, quando comecei a fazer hip-hop a sério, o que me interessava eram os Public Enemy ou o 2PAC."

A parca exposição a que esteve votado até Árvore Kriminal não lhe trazia nenhum orgulho: "Não tenho assim tanto interesse no underground." Mas na frase seguinte, em que reafirma o que disse antes, o pronome que usa revela a massa de que é feito: "A nossa ligação ao underground nacional é só a de pouca gente nos conhecer."

"Nossa"? "Nós"? De quem fala Halloween? Da sua crew de Odivelas. Em 1999 eram "cerca de 20". "Hoje somos seis." Alguns ficaram pelo caminho e as suas mortes podiam ter sido evitadas: "O Johny Ganza morreu de diabetes. Não se cuidava, deixou-se andar, não seguia os conselhos do médico, é assim."

É assim - pelo menos no bairro de Halloween em Odivelas. É tão assim que ele diz que a imagem que lhe é colada, a de um rapper assolado pelos seus demónios, "não é completamente errada". "Quando cresces num bairro em que não há perspectivas de futuro, a solidão, a angústia, o desespero acabam por entrar no teu rap." "Agora não é tanto assim, mas antes de haver a estação de metro Odivelas era uma terra meio perdida, meio isolada", recorda o rapper. "Era muito fácil meteres-te na má vida e ires dentro cinco anos."

Halloween tem uma visão curiosa da percentagem de real contida na sua música: por um lado, diz não abordar só o que sente, mas também "o que os outros sentem"; por outro, garante que "para quem é de fora" a sua música, em particular as letras, "até pode parecer pesada", mas "quem vive lá acha que é leve".

"As pessoas de fora não têm a noção", diz. "Achas que "rapar" sobre roubar é pesado? É leve. A violência de que falo existe e ainda é pior. Perdi muita gente ali." O mesmo com as drogas: "Coisas como a coca, para nós, pobres, entraram na moda. A maior parte dos dealers que vês lá começaram por curtir umas linhas, depois armaram-se em putos que só vendem uns pacotinhos e depois foderam-se."

Apesar de tudo, as coisas hoje parecem menos negras: quando escreveu Projecto Mary Witch Halloween, "não tinha dinheiro, nem responsabilidades e não via futuro". Hoje tem um miúdo de três anos e uma carreira - que deve ter continuação discográfica no próximo ano, com um álbum "mais electrónico, mais digital". Ainda assim, e porque a sua bitola de negrume não é propriamente convencional, a última coisa que diz é: "Gosto da ideia de actuar no dia de todos os mortos. Fica bem com a minha música."

Sugerir correcção