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Maioria dos familiares das vítimas de Entre-os-Rios ainda não refez as vidas

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É um luto difícil de fazer: não há um corpo para enterrar , como manda a tradição cultural e religiosa"Há pessoas que não conseguem comer peixe do rio" MANUEL ROBERTO

Investigação revela que todos os familiares que nunca encontraram os seus mortos sofrem de stress pós-traumático, dez anos depois do acidente que provocou 59 mortos - 36 corpos não foram recuperados

Há quem coloque coroas de flores no rio em dias de aniversários ou datas festivas. Há quem ouça o telefone tocar e, por instantes, pense que a pessoa que perdeu poderá estar do outro da linha. Há quem recuse comer peixe do rio. Há quem alimente a esperança de que uma amnésia possa atrasar um regresso a casa. Há quem tenha percorrido a costa da Galiza com o coração nas mãos durante demasiado tempo. Noventa e cinco por cento dos familiares das vítimas da queda da Ponte de Hintze Ribeiro em Entre-os-Rios, Castelo de Paiva, estão num difícil processo de luto. Cinquenta e nove pessoas morreram, 36 corpos nunca foram encontrados depois do fatídico acidente. Dez anos depois, todos os familiares sofrem de stress pós-traumático, 90 por cento confessam que teria sido importante encontrar os cadáveres para fazer o luto, enterrar os mortos, realizar os rituais fúnebres. Setenta por cento admitem que não conseguiram refazer as suas vidas.

Estas são as principais conclusões do estudo Ausência de Cadáver Enquanto Factor de Risco para o Luto Complicado: O Caso da Tragédia de Entre-os-Rios, realizado pela enfermeira e psicóloga clínica Lúcia Ferreira, no âmbito da sua dissertação de mestrado em Psicologia Clínica e Saúde no Instituto Superior de Ciências da Saúde do Norte. A também presidente da Associação Perdas e Afectos, com sede em Paranhos, Porto, verificou no terreno que a ausência de cadáver significa um processo de luto complicado e traumático.

Lúcia Ferreira esteve em Entre-os-Rios em 2011, ano do 10.º aniversário da tragédia, para analisar como vivem os familiares das pessoas que perderam a vida a 4 de Março de 2001 e que nunca recuperaram os corpos. Não foi fácil. Houve gente que recusou participar no estudo por não querer reviver aqueles momentos, para não falar de feridas que custam a sarar.

O assunto tem pouca literatura científica de suporte e a psicóloga acabou por fazer um estudo único a nível mundial. Elaborou uma entrevista semiestruturada para aplicar na sua amostra de 20 familiares directos das vítimas em que pelo menos um dos corpos não apareceu.

Flores a descer o rio

A média etária da amostra é de 44 anos. Oitenta e cinco por cento salientam que seria importante ter um lugar onde soubessem que os corpos dos seus familiares estavam sepultados. "Alguns familiares referem que fizeram um ritual fúnebre simbólico, tendo enterrado objectos pessoais daqueles que perderam naquela noite fatídica. Não poucas são as vezes em que se vêem flores a descer o rio, em sinal de homenagem", diz a investigadora. "Não só aquando dos aniversários do trágico acidente, mas também em datas mais significativas, como dias de aniversário de nascimento ou casamento e outras datas festivas do calendário, como o Natal, a Páscoa ou dia dos fiéis defuntos", verifica a psicóloga.

É um luto difícil de fazer: há a confirmação da morte, há uma certidão de óbito que atesta a perda, mas não há um corpo que se enterrou. As cerimónias fúnebres não foram feitas como manda a tradição religiosa e cultural. "O cadáver não apareceu e, por isso, continuam num processo de luto complicado. Há familiares que não conseguem ter um dia-a-dia normal, o que se repercute não só a nível familiar como a nível laboral."

Lúcia Ferreira ouviu histórias que não esquecerá. "Há pessoas que não conseguem comer peixe do rio, há pessoas que, quando ouvem o telefone tocar, ainda pensam que vão ouvir o familiar do outro lado da linha", refere. Os testemunhos demonstram uma espera sem explicação racional: "Muitas vezes, quando a porta se abre, estou à espera que sejam eles"; "Podiam ter conseguido sair numa margem, estar perdidos e com amnésia, não podendo assim voltar para casa... sabiam nadar tão bem!...". "Há ainda a referência ao medo que se instalou de que algo semelhante volte a acontecer, o medo de perder alguém que se ama de forma inesperada", sustenta.

As vidas de 70 por cento dos familiares ainda não voltaram à normalidade. A parte racional aceita a morte, a parte emocional não se reestrutura, falta-lhe uma despedida formal, um corpo para enterrar, um sítio para o velar.

Três pessoas perderam mais de sete familiares directos e esses corpos nunca apareceram. Entre elas está uma senhora de meia-idade que perdeu todos os familiares na tragédia e ficou sozinha. Um homem que perdeu o filho, a nora e os netos, vai todos os dias à casa onde moravam para abrir e fechar janelas, para ver se está tudo em ordem.

A 4 de Janeiro de 2003, foi inaugurado, na margem do rio Douro, um monumento em memória das vítimas: um anjo em bronze com 12 metros de altura e 10 toneladas. Ali estão gravados os nomes de todos os que morreram na queda da ponte e é também ali que se realizam rituais colectivos de luto. Mesmo assim, os familiares que nunca encontraram os corpos desaparecidos no rio têm dificuldades em assumir uma despedida que um funeral permitiria.

Apoio individualizado

No estudo, 50 por cento dos familiares admitiram necessitar de apoio psicológico, 20 por cento responderam que talvez. "O que significa que 70 por cento das pessoas ainda se sentem extremamente desorganizadas, podendo o apoio psicológico ser de elevado significado neste processo, mesmo tendo passado dez anos da tragédia", conclui a investigadora.

"Houve um erro crasso no início da intervenção em Castelo de Paiva, que foi o apoio psicológico em grupo, as pessoas não conseguiam expor as suas emoções. E isso é completamente contraproducente. Se houvesse um acompanhamento individualizado, provavelmente não teríamos os resultados que temos hoje", refere Lúcia Ferreira. Depois da tragédia, foi prometida a continuidade do apoio no Hospital do Padre Américo, em Penafiel. "Mas esse apoio nunca chegou a acontecer."

Com os dados na mão, a Associação Perdas e Afectos, da qual Lúcia Ferreira é presidente, partiu para o terreno. Desde Julho, três psicólogas prestam ajuda individualizada a cerca de 20 familiares. As consultas são gratuitas e realizam-se quinzenalmente, aos sábados de manhã, em Castelo de Paiva.

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