Em movimento com Bill Callahan

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Do silêncio de Callahan só esgravatamos a superfície, como se lhe rondássemos a porta sem nunca entrarmos

Um filme sobre a tour - "a vista das janelas da furgonete de um importante songwriter americano". Por Luís Miguel Oliveira

Seria de esperar que Apocalypse: a Bill Callahan Tour Film não fosse um Cocksucker Blues (o filme de Robert Frank que apanha os Stones em digressão, no mais debochado de si próprios). Mas talvez não se previsse que acompanhar Bill Callahan on tour resultasse numa experiência tão zen. O filmezinho de Hanly Banks, muito bonito, abre a secção Heart Beat (duas sessões, a 23 e 28 de Outubro, no São Jorge), e muito apropriadamente, porque heartbeat (de Too Many Birds, canção de Sometimes I Wish We Were an Eagle) é a última palavra pronunciada em Apocalypse. O modelo é consagrado e, valha a verdade, o tema (o músico em digressão) talvez não permita grandes fugas à norma - actuações ao vivo, pontuadas por intróitos contemplativos e reflexões, quase sempre em off e extraordinariamente longas tratando-se dele, pela voz do próprio Callahan. Mas Hanly Banks tem arte suficiente para que a aplicação do modelo nunca seja banal. Os momentos musicais (quase tudo canções de Apocalypse, o último disco de Callahan, com excepção de uma soberba interpretação de Say Valley Maker, porventura a greatest american song do século XXI) são filmados com brilho e imaginação, variando os planos, jogando com luzes e sombras, e sem deixar que esses recursos se transformem em poluição - o rosto de Callahan, "concentradíssimo", torcendo-se à procura das notas, está sempre no centro. "Tenho que estar completamente dentro das palavras", diz ele, que acha que não pode oferecer às pessoas menos do que isso. Musicalmente é sobre a entrega, este Tour Film.

Mas também é, de facto, um filme sobre a tour, o movimento constante - "a vista das janelas da furgonete de um importante songwriter americano", conforme justa descrição da própria Hanly Banks no seu site pessoal na web. As cidades e os campos passam em desfile, as cidades e os campos da América, matéria primeira das canções de Callahan. I love America, diz ele sem grandiloquência, antes de denunciar alguma indecisão quanto ao verdadeiro significado desse frase. As pessoas, os animais (os dois momentos mais impromptu: quando Callahan vai soltar um bezerrito preso numa rede à beira da estrada; e quando interrompe um soundcheck por se aperceber - "oh it"s a kitty!" - da presença de um gato), a paisagem, vegetal e mineral, as estradas e os "veículos" ("adoro viajar, especialmente dentro dum veículo"). Tudo coisas que reconhecemos como elementos visuais típicos das canções de Callahan, habitualmente plenas deste tipo de imagerie. (E Banks conhece as canções, claro, ou nem dedicaria tanto tempo, na parte final, a ver Callahan encantado com um espectáculo artesanal de fireworks). O resultado não podia ser melhor. De Callahan - do silêncio de Callahan - só esgravatamos a superfície, como se lhe rondássemos a porta sem nunca entrarmos. Há silêncios que não se devem quebrar. Mas que se podem converter numa espécie de sonho, um fio de imagens fragmentadas, "saturação de signos" se não for exagero, capaz de devolver, sem traição nem "interpretação" (excessiva), a beleza da viagem que, para nosso proveito, Bill Callahan encetou há coisa de vinte anos. Imperdível para "fãs"; os outros não perdem nada em experimentar.

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