A hora do ódio

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A durabilidade da música dos Pistols reside nos seus elementos mais primários: as guitarras e a voz. Rotten canta qual bruxa arrebatada pela blasfémia, a guitarra de Steve Jones e o baixo de Paul Cook (e Sid Vicious) formam uma massa metálica e oleosa apontada às tripas

Coincidência irresistível. O lançamento de No Love Deep Web coincide com os 35 anos de Never Mind the Bollocks. Mas até que ponto os contextos são comparáveis? Oportunidade para rever a fúria escarninha dos Sex Pistols enquanto o futuro escurece. Por João Bonifácio e José Marmeleira

Na abertura de Retromania, o livro em que defende que a cultura popular actual está obcecada com o passado, o crítico musical Simon Reynolds narra uma visita ao British Music Experience - exibição permanente em Londres, dedicada à música popular britânica - fazendo notar, não sem consternação, que as secções dedicadas aos artistas mais controversos, como os Sex Pistols, eram tão arrrumadinhas que todo o perigo da música era anulado.

Segundo Reynolds, em vez de uma tabuleta a indicar a entrada havia uma imagem gigante de Johnny Rotten, vocalista dos Pistols, qual mestre-de-cerimónias de alfinetes. Uma imagem gigante a indicar o caminho para a exposição: será que daqui a uns anos farão o mesmo com Stefan "MC Ride" Burnett, o MC dos Death Grips? Provavelmente não: para isso seria necessário que os Death Grips (ou outro grupo que se propusesse retratar o medo e a paranóia desta época) conseguisse alcançar o mainstream a uma velocidade vertiginosa, chocar toda uma sociedade, fragmentar-se e, posteriormente, ser assimilado. Porque o que Reynolds está a querer dizer é isso: o que antes era alvo do medo das gentes respeitáveis (os Pistols e a sua música) hoje foi assimilado pela cultura popular e mainstream, e tudo ao redor deveio caricatura. Dos punks envelhecidos que recordam os bons velhos tempos aos miúdos que, hoje, anacronicamente, usam crista, resta a nostalgia, a imagem e uma vaga noção de rebeldia, distante do terror que o quarteto inspirou nos turbulentos anos de 1976 e 1977 - o exacto período que duraram.

Aparentemente, a recente reedição de Never Mind The Bollocks (o único álbum que os Pistols deixaram), numa data pouco redonda (passam agora 35 anos da edição original) dá razão a Reynolds: a reedição surge para, bem, para vender, e se se reedita com pompa e circunstância um disco chocante passados 35 anos é porque a reedição é viável economicamente - porque o mundo não só aprendeu a aceitar a existência daquele pedaço de ódio como quer um pouco mais.

Mas é isso que, desde a noite mais antiga, o mundo faz com os traumas: assimila-os. O que talvez seja um sinal de que vivemos num mundo ligeiramente mais civilizado.

Por outro lado, talvez a existência da reedição tenha um significado mais simples: ainda há gente para comprar o disco - gente que só agora está ou vai descobrir os Pistols e que se revê naquelas canções. Vendo as coisas por este prisma, conclui-se que por mais que aquela música tenha sido assimilada, ainda há quem, ao ouvir o disco pela primeira vez, sinta o seu impacto. Ou seja: se despirmos os Sex Pistols da iconografia, dos mitos, do saudosismo e de toda a ganga inútil, se nos centrarmos apenas na música e nas palavras, as canções mantêm o poder de, talvez não chocar (porque o mundo também aprendeu com Never Mind The Bollocks, também se tornou mais cínico e coreáceo), mas causar impacto.

A questão é: o que é que naquelas canções causa impacto, em particular em quem só agora os descobre?

No future

Muito provavelmente a durabilidade da música dos Pistols reside nos seus elementos mais primários: as guitarras e a voz. Rotten canta qual bruxa descontrolada e arrebatada pela blasfémia (a sucessão de fucks em Bodies), a saliva a derreter-lhe as palavras, à beira da convulsão e do vómito. Repulsa insuportável para a família, a escola, as instituições. Excitante, inelutável para os adolescentes. A guitarra de Steve Jones e o baixo de Paul Cook (e Sid Vicious) formam uma massa metálica e oleosa apontada às tripas (os riffs de Pretty Vacant). E depois há a trepidação da violência (não vale a pena estarmos com rodeios, esta foi sempre um predicado do rock), uma injecção de testosterona, algo que provoca uma vontade de partir coisas, odiar gente, e gostar de partir e odiar (lição rapidamente aprendida nos subúrbios dos EUA). O que não é um feito menorizável.

Mas também é possível que o niilismo veiculado pelas palavras de Rotten faz, por simples acaso, todo o sentido nos dias de hoje. O "No future, no future/no future for you" que Rotten grita em God save the Queen podia ser cuspido na direcção de qualquer pessoa que vemos passar na rua - e faria, até certo ponto, sentido. Para sermos exactos, esse "No future" era inspirado pelo medo da guerra nuclear, mas pouco importa: o que os putos ouvem é "No future" e isso basta-lhes (e ainda poderíamos lembrar/acrescentar Bodies, No Feelings ou Pretty Vacant, que hoje tanta gente canta sem saber).

Há semelhanças entre o caos em que os Pistols surgiram e o caos de hoje - o que nos poderia levar a pensar que outros projectos-limite talvez conseguissem (hoje) causar um impacto semelhante. Mas não é bem assim. Vamos por partes.

O choque causado pelos Pistols foi o estertor de uma sociedade que imaginava poder ter um pouco de paz após a década de 1960: ao fim e ao cabo, pensaram as gentes respeitáveis ao ver os Pistols na BBC, andou-se a aturar revoluções sociais, a perda das colónias, o terrorismo, para isto?

Verifiquemos as semelhanças e diferenças entre as épocas: hoje vamos para a rua perante o crescendo brutal de desemprego, os cortes salariais e a precariedade. Mas de 1978 a 1979, quando os Pistols já tinham acabado (pese embora os Clash estivessem cada vez mais fortes e politizados) as greves foram constantes. Porquê? Porque o governo trabalhista impôs que os salários não podiam subir acima de cinco por cento. Este ainda era o mundo do emprego único, do Ocidente capitalista como sociedade em ascensão contínua rumo ao fim da história. Mas em baixo ruminava um mal-estar social que já vinha de há uns anos. Em 1975 a taxa de desemprego no Reino Unido atingiu o maior valor desde a II Guerra, 8,1 por cento, subindo ao ritmo de 10 por cento ao mês. A inflação chegava aos 20 por cento. Desde 1973 o país atravessava apior recessão desde a Guerra, em parte devido à crise do petróleo (que aumentou cerca de 70 por cento em 1975, em consequência do embargo árabe motivado pelo apoio americano aos israelitas). O carvão diminuíra porque os mineiros trabalhavam o mínimo necessário como forma de protesto contra as restrições salariais. Pelo que o governo propôs, como forma de poupar energia, o Three-Day Week em que só se podia usar electricidade para motivos comerciais três dias por semana. O resultado foi uma série de apagões constantes.

É garantido que as nossas queixas de hoje são mais graves e prementes que as de 1975 (quem tem a coragem de berrar I"m a lazy sod?), mas imaginem-se em 1975, sem saber o que o futuro vos vai trazer, e ponham-se na pele de um puto de 19 anos desempregado: não sentiriam ódio? Não se escreveu 19 anos por acaso: Johnny Rotten nasceu em 1956, andava o rock"n"roll de gatas. Ao início pensou-se que definharia depressa - o rock, isto é. Que seria apenas uma moda passageira. Mas uma segunda leva - cortesia dos Beatles - massificou-o. Muito possivelmente, o pequeno Johnny quedou-se de amor pelo barulho das guitarras. Mas quando Rotten chegou aos 19 anos, o país estava envolto num caos de desemprego, apagões e restrições. As mulheres, os negros e os colonizados tinham sido libertados - mas o que é que isso interessa quando se vive no medo? Quando não se tem futuro? Ninguém viria livrar os pobres da sua pobreza e Rotten tinha consciência exacta disso - da inutilidade da sua vida.

O medo

A pergunta seguinte é mais complicada: porque é que não há, hoje, algo como os Pistols? Que simbolize os medos da miudagem (e não só, porque a estirpe de medo actual é mais resistente, e dura até idades mais tardias), que aterrorize, e acima de tudo que aterrorize tanto, tão depressa e de forma tão massificada?

Uma das hipóteses seria assumir que o terreno do distúrbio político se deslocou. O caso actual das Pussy Riot pode levar-nos a assumir que a performance é mais eficaz que uma canção (por mais que uma canção também seja "desempenhada"), embora, sublinhe-se, a Rússia de Putin não seja a Inglaterra de 77.

É possível que assim seja - em parte porque a música se banalizou: quando ouvimos a nossa canção preferida na aparelhagem do super-mercado enquanto pomos nabiças no carrinho sabemos que já não há ali poder de subversão.

Mas os alvos e os meios também mudaram. Os Pistols atacavam a Rainha não porque esta tivesse poder legislativo (logo responsabilidade factual sobre o estado do país), mas porque era o rosto do status quo - o poder. Entre a sarjeta e a BBC era um passo - que podia ser dado com a ajuda de um agente esperto. A BBC, note-se, estava em todos os lares - era um meio de comunicação que agregava todo um país. Certos traços de uma cultura comum ainda resistiam e quando há um meio de comunicação tão agregador, basta entrar nele para abalar tudo. Quando há muitos só se toca numa parte ínfima da sociedade - aquilo a que hoje se chama um nicho de mercado. (Lembrem-se sempre: em novilíngua vocês não são pessoas, são nichos de mercado.)

Que rosto temos hoje? A cultura pop atomizou-se (enquanto a experiência dos Pistols foi, nos discos e nos concertos, sobretudo social e colectiva). É preciso lembrar que vivemos num mundo com milhares de canais de televisão, jornais, revistas, Youtubes, Facebooks, sites e o que mais houver, em que as manipulações do real são minuciosamente inseridas e disseminadas e multiplicam-se todos os dias. Junte-se a isto a banalização de deboche protagonizada pelas estrelas pop (todos dias há uma que mostra as cuecas, as mamas ou a pila do namorado) e da violência gráfica (o torture porn, os desvarios do black metal) e as estratégias de Malcom McLaren, Jamie Reid e Vivienne Westwood não teriam hoje a mesma eficácia de há 35 anos. Como é que se compete com isto? Como é que uma canção pode ter possibilidade de conviver com isto?

Há 35 anos, quando a palavra terrorista tinha outro significado, os Sex Pistols foram terroristas descendo o desfiladeiro, a alta velocidade, de encontro a um mundo que pelo menos Johnny Rotten odiava. O fascínio que causavam - e ainda causam - é o de sabermos que se vão esfrangalhar publicamente mas sem pedirem desculpa. O de saberem que não derrubariam muro algum e mesmo assim irem lá bater com a cabeça na parede. A velocidade a que se moveram era proporcional ao seu ódio e ao desespero surdo de uma geração.

Hoje não seria possível. Hoje já não é possível.

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