Jorge Fernando põe soul no fado

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Hoje em Lisboa e amanhã no Porto, Jorge Fernando estreia nos coliseus o seu mais recente disco, onde gravou com os Nu Soul Family, os Expensive Soul e Fausto Bordalo Dias. Chamam-lhe Fado? Também ele, a cantar.

A lista de convidados é impressionante: Fausto Bordalo Dias, Patxi Andión,Nu Soul Family, Expensive Soul, Celeste Rodrigues, Filipa Cardoso, Ricardo Ribeiro, Fábia Rebordão, Sam The Kid. E Custódio Castelo na guitarra portuguesa, Guilherme Banza na viola, Gustavo Roriz no baixo, além de um coro composto por Tó Cruz, David Cruz, Berg, João Pina e Bruno Fernandes. Tudo isto para apresentar, nos coliseus (hoje em Lisboa e amanhã no Porto, onde só faltarão os Expensive Soul por razões de agenda) o mais recente disco de Jorge Fernando, Chamam-lhe Fado. Ele também lhe chama assim, mas prefere que sejam outros a julgar o seu trabalho. Que, desta vez, tem como principal novidade um constante arranjo de vozes, entregue a Dino D"Santiago, dos Nu Soul Family. A alma do fado tornada soul? Jorge Fernando explica: "Depois de todas as experiências por que tenho passado, desde gravar fado com a Brigada Vítor Jara, com bateria e percussão, até trabalhar com uma formação meio clássica, oboé, piano, cordas, havia dentro de mim esta inquietude: o que é que faço agora? Foi assim que cheguei às vozes. Gravei com os Nu Soul Family e disse: era isto que me estava a faltar."

E a ideia avançou. Quase todos os doze temas do disco, três deles já compostos há algum tempo e os outros de criação mais recente, têm arranjos vocais, mais preponderantes nuns casos e mais dissimulados noutros. A participação dos Nu Soul Family (Dino D"Santiago e Virgul) num tema (Desespero) e dos Expensive Soul noutro (Entre o céu e o chão) reforça essa opção. Integram ambos a lista dos convidados, ao lado de Fausto Bordalo Dias. "O Fausto é um caso à parte, é um grande farol na música portuguesa", diz Jorge. "Eu cresci através do que ouvi dele. O Fausto seria classe A em qualquer parte do mundo, nascesse onde nascesse." O tema que gravaram juntos, O livro de Job, tem uma justificação antiga: "Eu sou um crente-crescente, não creio nas coisas por crer. E o Fausto, sempre que falamos, há uma certa abordagem comum nisso. O tema é um daqueles que faço e guardo. Mas achei que o Fausto ia gostar e acertei."

No xadrez da vida

Os restantes temas do disco arrastam histórias, impressões, memórias pessoais que Jorge Fernando vai vertendo em canções. Valsa dos amantes, a abrir, coloca o "deslumbre da puberdade" e da primeira paixão muitos anos à frente, num reencontro que traz à tona e põe à prova o que dele "ficou vivo dentro das pessoas". Relógio do só troca a recordação pelo drama: "É: mato-me ou não me mato? Pessoalmente nunca pensei em suicídio, mas percebo o desespero enorme que leva a isso. Como eu digo nos versos: "Porta sem se abrir/ que o trinco é forte/ umbrais da morte/ falta-me um passo/ não sei se o faço/ posso fugir". Isto conduz-nos ao tema seguinte, Desespero: "Aí há uma luz ao fundo do túnel, digamos que é mais nostálgico do que triste. Mas o desespero tem tendência a acentuar-se nos dias de hoje, o que é de si desesperante." O tema seguinte, Mundo é duedo, termo do crioulo cabo-verdiano que quer dizer "dorido", é o único do disco feito em parceria, já que a música é de Fábia Rebordão. "Fomos convidados a cantar no Zimbabué, eu e a Fábia, e assistimos de perto a um velório de um negrinho pequeno que tinha morrido e achámos aquilo profundamente trágico. Ela foi para o quarto, escreveu uma música, e depois ligou-me a dizer que a tinha escrito ainda com a emoção de ter visto aquilo. Eu escrevi os versos, que relatam esse ambiente, a dor, esse arreigamento familiar."

Inútil conselho é, no disco, um virar de página. "É interessante porque nós passamos a vida a dar conselhos aos outros, sobre todos os assuntos, e o que é facto é que estar por fora é muito simples. Quando vivemos por dentro dos problemas perdemos a visão periférica mas quando estamos fora tornam-se muitas vezes inúteis os nossos conselhos porque quem está por dentro não sente dessa maneira. Daí o inútil conselho." Depois de O livro de Job, com Fausto, vem Entre o céu e o chão, que retoma de alguma forma a ideia de Inútil conselho: "Dou por mim a querer pensar/ quem meus olhos quer fechar."

Breve notícia sobre João da Viola relata um caso real, da infância de Jorge: "Andava sempre com a viola, num saco ao ombro, morreu aos 14 ou 15 anos com uma overdose. Ainda há muitos joões da viola, por aí, a sucumbirem ao peso da vida e à droga." Num cenário global que é dos Lápis sem cor, a canção seguinte: "Não há estímulos na vida: nem social, nem económico, nem de amor, muitas vezes as pessoas voltam todos os dias a uma casa que já não é a sua, estão lá porque estão, num casamento de conveniência..."

No tema que dá título ao disco, Chamam-lhe fado, diz-se "só há uma Lisboa", mas na verdade essa Lisboa já tem, com os tempos, muitas outras lá dentro. "O que me encanta no fado é o seu encantador mistério. Nasceu aqui, ali? Cantamo-lo e pronto, essa é a melhor maneira de o servir." A Oração do infiel retorna à ideia do crente-descrente retratada antes na figura bíblica de Job. "Não é ao calhas que surge cada descoberta científica, diária, no cosmos. Agora o que rege tudo isto não me é permitido perceber agora." Do universo à terra, o disco fecha com Peão de xadrez: o homem, só, mas indispensável pelo seu papel único. "Jorge Luis Borges, um dos meus deuses da escrita, escreveu num poema, O xadrez, que todos nós somos prisioneiros do mesmo tabuleiro, feito de negras noites e de brancos dias. E é isso: isoladamente, somos imprescindíveis neste xadrez da vida. E, se a peça se mover no sentido certo, acabaremos por mudar isto."

Ver crítica de discos págs. 36 e segs.

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