Encenar o tempo e questionar a história

Foto
ENRIC VIVES-RUBIO

Gerard Byrne O fotógrafo irlandês expõe em Lisboa uma série de trabalhos realizados na última década. São fotografias e vídeos com que relê a história de uma forma que contraria as narrativas tradicionalmente associadas a ambas as artes

Imagens ou Sombras é o título da exposição do artista irlandês Gerard Byrne (n. 1969), inaugurada na sexta-feira no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. É a primeira vez que expõe em Portugal, mas já tinha visitado Lisboa quando andava na escola de arte. Estudou escultura, mas o seu trabalho é famoso pelas suas instalações vídeo e pelo modo como coloca os personagens a dizer coisas irónicas sobre o prazer sexual, as relações a três, a história da arte, e como aborda, a partir de relatos jornalísticos, certos temas da História. Byrne é dono de um currículo impressionante: expôs na Bienal de Veneza, trabalha com as melhores galerias e a obra que apresentou na última Documenta, em Kassel, fez muito sucesso.

Que sentimento tem relativamente a esta exposição?

É muito bom fazer uma exposição que não é muito grande, mas que tem um conjunto diferente de trabalhos. Gosto de apresentar o meu trabalho desta maneira mais polivalente, em que é possível mostrar os muitos aspectos com que se relacionam os meus projectos.

Os trabalhos são de datas muito diferentes.

O mais antigo é de 2001, outros são mais recentes e alguns ainda estão em desenvolvimento.

Estudou escultura, mas nunca fez escultura.

Sim, nunca fui escultor. Trabalho com fotografia e vídeo, mas uso as imagens como se fossem objectos. E isto é fundamental, porque não sou um realizador: nunca mostrei os meus trabalhos num cinema. Não me interessa essa experiência plana do cinema, gosto da materialidade da imagem.

Isso é uma espécie de jogo que estabelece com o espectador?

Muitas vezes faço filmes que são impossíveis de ver. Pode-se ter uma experiência do trabalho, mas é muito difícil dizer que se viu tudo até ao fim. Os meus vídeos são projectados em ecrãs diferentes e muitas vezes as imagens repetem-se, outras vezes não, e não se sabe onde começam e acabam. Parecem peças contínuas sem princípio, meio ou fim. E isto porque não me interessa a narrativa, nem a resolução linear de histórias. Interessam-me assuntos que resistam a essas estratégias.

Diz que quer opor-se à linearidade da narrativa, mas nos seus trabalhos está sempre a contar histórias.

Sim, é verdade que estou. Mas a experiência de contar uma história é que é importante, muito mais do que um conteúdo específico ou uma mensagem. O Loch Ness [instalação sobre o mito do monstro marinho do lago de Loch Ness, em que o artista utiliza diferentes dispositivos como a fotografia, a escultura, o filme e o som, como se fosse uma exposição colectiva com diferentes artistas] é uma narrativa histórica acerca de uma ausência. Em todas as narrativas, imagens e representações, o monstro de Loch Ness está sempre ausente. O que sobra é o modo como a história é contada e é isso que, na verdade, é o monstro.

Aonde é que vai buscar os seus assuntos?

Não trabalho a partir da imaginação ou dos meus sonhos, mas a partir de materiais com uma história cultural. A escolha é muito pessoal e intuitiva. Gosto de percorrer revistas e jornais sem ter um método muito preciso. A minha preferência é por aquelas coisas que, num certo momento cultural e artístico, fazem sentido e parecem ter muito valor e depois, passado alguma tempo, parecem desprovidas de qualquer interesse. E esta perda de interesse dá muito que pensar.

Isso faz parecer que trabalha com temas muitos comuns e corriqueiros do quotidiano, mas os seus assuntos não são nada triviais: a sexualidade, a história da arte, o poder.

De facto, escolho as minhas lutas. E podem-se caracterizar as áreas em que trabalho como não sendo triviais e estabelecer relações temáticas entre todos os projectos. Mas resisto a fazer esse exercício. Os meus interesses de 1990 são diferentes dos de agora. E querer encontrar elementos permanentes e comuns é distorcer os trabalhos. Há alguns elementos permanentes, como a presença de homens a falar; as poucas mulheres que surgiram nos meus trabalhos são sempre personagens secundárias. Mas a ideia mais presente no meu trabalho é o modo como queremos regular e moldar o passado para poder controlar o futuro. Tento encenar essa autoridade da história.

Uma encenação feita através de um olhar irónico? É que nas suas obras está-se sempre a rir.

É verdade. É uma forma de ser crítico. Gosto muito que se riam nos meus trabalhos, mas eu não faço comédias.

Portanto, não procura ser irónico?

Não. Mesmo os meus actores, ou os textos que trabalho, não são escolhidos por serem cómicos. Os meus valores não são os do cinema de Hollywood. Gosto de construir imagens e de perceber como se podem materializar representações visuais. E que os meus trabalhos sejam complexos e difíceis de ver. São obras incompletas, que, como disse, não têm princípio, meio ou fim.

O que é que o atrai nessa incompletude e impossibilidade em ver totalmente o seu trabalho?

Num certo nível, gosto de explorar a relação entre o espectador e as obras de arte, ver os diferentes comportamentos e, depois, exploro muito a ideia de uma obra que resiste a ser consumida. Para voltar à ironia. Escolhe os assuntos porque eles são potencialmente cómicos?

Exploro intensamente o modo como uma coisa muito séria num certo tempo pode posteriormente transformar-se numa grande piada e ter um sentido totalmente diferente. Por exemplo, o vídeo sobre o Sartre [trabalho Homme à Femmes, em que o artista encena uma entrevista que o filósofo francês deu à jornalista Catherine Chaine, do Le Nouvel Observateur, em 1977, sobre as suas relações amorosas com as mulheres e com Simone Beauvoir] não é cómico e as questões abordadas eram naquele tempo muito sérias, mas, no presente, são risíveis. Estas mudanças de sentido que a história provoca são a minha principal matéria de trabalho.

Numa das obras que agora apresenta em Lisboa, parece estar a gozar com a arte minimalista americana.

Isso acontece em A Thing Is a Hole in a Thing it Is Not [instalação de vídeo com cinco ecrãs de grande escala em que o artista aborda o trabalho dos escultores minimalistas: Carl Andre, Dan Flavin, Dibald Judd, Robert Morris, Toni Smith, entre outros], e a questão não era fazer pouco, mas mostrar como é que trabalhos tão poucos amistosos, hostis e nada discursivos como as esculturas minimalistas foram objecto de tanta conversa. Há aqui uma contradição deliciosa entre a mudez das obras e a articulação exímia feita por aquele grupo de artista. A linguagem que estes artistas usam nunca se refere aos trabalhos, mas a atitudes, comportamentos e às suas visões artísticas. As obras são muito puras e silenciosas, mas depois são mediadas pela linguagem nas imensas entrevistas que deram e nos textos que escreveram. Obras que apesar da sua hostilidade original inundaram os museus e estão por toda a parte. E o meu trabalho foi não só mostrar essa contradição, mas fazer um filme que não pudesse ser visto como um filme e os espectadores fossem obrigados a andar às voltas entre os volumes sobre os quais são projectados. Quis provocar um encontro espacial.

E aquela viagem de carro através da noite, que é das primeiras imagens que se vêem nesse trabalho?

Isso foi uma maneira de abordar o mito fundador do minimalismo: uma viagem relatada por Tony Smith, que, diz ele, lhe revelou o famoso quadrado negro que depois transformou em esculturas. E com essa viagem evitam-se todas as críticas feita ao minimalismo, de ser arte sem duração, sem tempo, infinita. Esta ideia é muito interessante, porque mostra a possibilidade de se perceber obras de arte a partir de categorias temporais.

O discurso e a linguagem são elementos muitos importantes no seu trabalho.

Sim. A linguagem é muito importante para mim, e são sempre as coisas escritas que dão início aos meus projectos. Tudo começa com um texto, é a referência contínua daquilo que faço. Não escrevo os textos, mas eles são as minhas ferramentas principais. Por vezes, não uso os textos integralmente, porque não me interessa fixar o sentido, ou a interpretação, nem embelezar ou ilustrar palavras. E este aspecto marca uma distinção grande entre o texto e as imagens que faço para eles.

Há sempre um espaço que fica entre as palavras e as imagens que impede a sincronia texto-imagem ou a relação de ilustração. É uma coisa que explora?

Esses desencontros e falhas fazem algum sentido. Algumas vezes, a razão desses intervalos vem do próprio texto; outras vezes, é porque.... não sei bem.

O trabalho com os actores é importante?

Os meus métodos de produção são muito caseiros, mas só trabalho com actores profissionais e passo muito tempo a ensaiar com eles e há uma qualidade na relação com o texto a que estou sempre muito atento. E presto muita atenção à luta encetada pelos actores para humanizar coisas difíceis e distantes, como o são alguns dos textos que uso.

Ainda que diga que as suas fontes são sempre jornalísticas, as suas obras articulam três níveis muito diferentes de discurso: encontra-se especulação filosófica, depois outras obras são muito factuais e, finalmente, a ficção também está muito presente.

É verdade. Faço parte de uma geração muito interdisciplinar, que faz uso de quase tudo. O jornalismo é a minha principal referência, porque o nosso mundo, com a sua intensidade e velocidade de acontecimentos, só se compreende através da imprensa. O presente dá-se a ver melhor nos jornais do que nas outras formas de escrita. Mas o meu uso dessas informações é destituída da urgência das notícias acerca do tempo presente. E, voltando ao início, estou muito interessado em ver a relação dos relatos jornalísticos com a história, ver a maneira como essas informações passam pelo tempo. Uma historização a que a imprensa, regra geral, não presta qualquer atenção.

Sugerir correcção